O Homem Sem Memória - 126
126 – E a vida seguiu o seu caminho. O camarada funcionário foi à dele e os nossos queridos camaradas foram à sua. Ou seja, o dirigente comunista foi copiar o comunicado de um outro comunicado, fazendo-lhe os pequenos ajustes necessários, para não se enganar na métrica, na semântica e na música, que ele interpretava como coerência ideológica. E era-o de facto. O Graça e o José, coadjuvados pelos seus amigos e camaradas, pegaram nos pinceis, nas tintas, nos fios, nos lápis, no giz, nas réguas e nos esquadros, nas tachas e nos martelos e nos Estatutos do Partido e foram pintar um mural numa parede que servia de resguardo a uma moradia a modos que burguesa. A orientação era boa e a sua posição em relação à rua e aos transeuntes era a ideal.
Para os estimados leitores não ficarem na dúvida, temos de cumprir – mesmo que nos custe, pois nestas coisas não gostamos de tomar partido –, com o dever revolucionário de informar que o Mário “Camões” e o Carlos Chouriço, mesmo a contragosto, se juntaram à brigada de agitprop, pois, sendo dissidentes ao nível da ideologia e da praxis partidária, como já vos demos a devida conta, não conseguiam cortar com a amizade.
Para eles a amizade estava acima de tudo. Até acima do Partido, daí a sua propensão para a debilidade ideológica, para o sectarismo pequeno-burguês e para os seus persistentes desvios ideológicos. Como todos bem sabemos, e a História nos transmite amiúde, são militantes deste tipo que dão em dissidentes e se transformam em perigosos anticomunistas. Dizem por aí que fracos comunistas dão anticomunistas audaciosos. As contradições da burguesia, tal e qual os caminhos do Senhor, são enigmáticas.
Antes de começarem a traçar as linhas quadriculares que iam possibilitar dar a forma correta ao mural, consultaram atentamente o esquiço que tinham na pasta onde a bandeira do Partido estava desenhada e devidamente repartida pelos respetivos quadrados. Alterando a escala, o estudo ia permitir que a bandeira ficasse como era estatutariamente exigido.
É que com a bandeira do Partido não se brinca. Por isso consultaram mais uma vez os Estatutos, nomeadamente o Capítulo X, intitulado “Símbolos do Partido”, art. 43º: “A bandeira do Partido Comunista é um retângulo de tecido vermelho que tem no centro em cor de ouro a foice e o martelo cruzados, símbolo do trabalho e da aliança entre os operários e os camponeses…”
“Então vamos lá a isto”, disse o Graça virando-se para o José. E com o giz e a régua desenhou os quadrados respetivos, tantos quantos os que se encontravam no esquiço. Nem mais, nem menos. Depois foi a vez do José se pôr a desenhar a foice e o martelo bem ao centro, como mandavam os estatutos. Nem menos, nem mais.
Para todos os camaradas poderem participar na tarefa revolucionária, o Graça, como bom e leal comunista, deu a ler ao Mário “Camões” o texto respetivo. Mas o Mário “Camões”, pedindo humildemente desculpa, despachou a tarefa para o Carlos Chouriço, argumentando, e bem, que devido ao olho de vidro e à pouca luz ambiente que por ali havia, as letras se tornavam pouco nítidas, o que podia originar alguma informação deficiente que pudesse por em causa o correto desenho da bandeira e, como muito bem tinha dito o camarada Graça, com a bandeira do Partido não se brinca.
Com voz neutra, como manda a boa tradição marxista-leninista, o Carlos Chouriço leu: “Em cima e à esquerda, debruada em cor de ouro, uma estrela vermelha de cinco pontas, símbolo do internacionalismo proletário…”
“Para aí Carlos”, pediu o Graça. E o Carlos parou. Mais uma vez pegou na régua, ou no esquadro, já não estamos bem cientes, mas para o caso tanto monta, olhou para o esquiço e traçou as linhas que devia traçar. Nem mais, nem menos. E lá apareceu a tal estrela, que afinal eram duas, uma, mais pequena, inscrita numa outra maior, para poder dar o respetivo efeito de debruo, e dessa forma poder a estrela vermelha ser inscrita no retângulo vermelho, que é a bandeira do Partido Comunista, e conseguir ser visível.
Terminada a tarefa, novamente o Graça deu ordem ao Carlos Chouriço para continuar a leitura. E o Carlos, novamente, com a sua voz neutra, como manda a boa tradição marxista-leninista, continuou a ler: “E por baixo da foice e do martelo, bordadas em cor de ouro, as palavras «Partido Comunista». Presas ao tecido…”
“Alto e para o baile”, ordenou o Graça. E o Carlos voltou a parar. Então foi a vez de o José pegar no giz e desenhar as respetivas letras. Redondinhas e à escala devida, enfiadas nas linhas e nos respetivos quadrados. Nem menos, nem mais.
Depois da tarefa terminada, o Graça ordenou: “Agora toca a mexer as tintas e a pintar.” Mas o Carlos Chouriço interrompeu-o para informar que o artigo ainda não tinha chegado ao fim. E pôs-se a ler: “Presas ao tecido, no ângulo superior esquerdo, duas fitas com as cores nacionais: uma verde e outra vermelha.”
“Disso passamos”, avisou o Graça. Nem tudo o que aí vem é para levar à letra. As fitas são para colocar na bandeira. Mas aqui trata-se de um desenho. Um mural é tecnicamente diferente. Além disso, aqui que ninguém nos ouve, eu mando o nacionalismo às malvas. Cá o rapaz é um verdadeiro comunista. E um verdadeiro comunista não tem nacionalidade. Só tem internacionalidade. É um militante planetário e plenipotenciário. Um revolucionário não tem pátria, a sua pátria é a própria revolução. Nisso sou um seguidor do Che Guevara. Para ele não havia fronteiras, depois da revolução em Cuba exportou-a para o Congo e depois para a Bolívia, ele que era Argentino. Por isso deixa lá as fitas e vamos ao que verdadeiramente interessa.”
“Mas aqui ainda há mais uma frase: “O hino do Partido é A Internacional.” Ó Porra, isto não interessa.”
“Olha, deixa estar”, disse o Mário “Camões”, “A Internacional canto-a eu.” Ai não cantas não”, avisou-o o Graça, “é que podes acordar a vizinhança e por estas bandas não somos lá muito bem vistos. Além disso, eu não quero ser mordido pelos cães ou levar o rabo cheio de sal para casa ou chumbo no buxo. Cantamo-la todos quando formos petiscar. Lá no restaurante do camarada podes cantá-la até que a voz te doa. Agora toca de pintar.”
Mais uma vez o Mário “Camões” se desculpou com a falta do olho que não lhe permitia pintar com o rigor exigido, nomeadamente no enchimento da foice e do martelo, podendo deixar a aliança operário-camponesa tremida ou mal definida. Para revisas, já bastavam os burocratas do Partido. Ele a poder ajudar nalguma coisa era no enchimento dos vermelhos. Para definir as linhas de fronteira, o melhor era o José que tinha a mão firme e os princípios todos no devido lugar.
Enquanto vários camaradas continuavam nos seus postos a manter o perímetro de segurança em relação à secção técnica e artística do núcleo da brigada da agitprop, o Graça, o José, o Carlos e o Mário pintaram a bom pintar a Bandeira do Partido. Os dois primeiros a definirem os contornos e os outros a encher o restante painel.
Quando deram por terminada a tarefa, arrumaram o material e dirigiram-se ao Centro de Trabalho com a alegria comunista estampada no rosto, que, ao contrário do que afirmam os reacionários, é igualzinha à da restante gente. Nem mais, nem menos. É bom que os mitos, as falsidades e as calúnias se comecem a desfazer. E se esta obra servir também para isso, ótimo. Se não amigos na mesma. Mas lá tentar, tentamos, até que a tentação nos doa.