Pérolas e diamantes (4): a utilidade das catástrofes
Machado de Assis, no seu livro “Quincas Borba”, referindo-se a uma epidemia que evitou um casamento, conclui que “as catástrofes são úteis, e até necessárias”. E ilustra a sua tirada filosófica com um pequeno conto que, à sua imagem e semelhança, “aqui lhes dou em duas linhas”.
“Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, um triste molambo de mulher, chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. – É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo. – Dá-me licença que acenda ali o meu charuto?”
De facto, pegando agora no que aqui nos trouxe, o nosso primeiro-ministro nem sequer precisa de estar embriagado para acender o seu charuto nas misérias do nosso próprio casebre. É mesmo sóbrio que assim age, falando mal e depressa, atrapalhando-se na sua ânsia de capataz da troika, tentando mostrar que é mesmo homem para ser ainda mais duro do que os duros e mais insensível que os insensíveis.
Ninguém, “no seu juízo perfeito, faz render o mal dos outros”, como bem escreve Machado de Assis. “Não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas.” Tudo isto é uma ideia consoladora, pelo menos na cabeça de Pedro Passos Coelho.
Já todos percebemos que, para mal dos nossos pecados, este governo que nos desgoverna, fá-lo conscientemente através do medo, da chantagem e da coação verbal e económica. A contenção, a austeridade, a pressão institucional, o confronto com o Tribunal Constitucional e a ameaça permanente de que isto ainda pode vir a piorar, é tão intensa que começa a ser insustentável.
Há um provérbio chinês que diz: “Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” Mas não pode ser lido de forma literal, senão dá barraca. De facto, parece que o poder da ignorância, da estupidez e da boçalidade nunca prescrevem. Paulo Francis tinha razão: a estupidez, a ignorância e a boçalidade ainda são as maiores multinacionais do mundo.
Além disso, o poder exercido de forma autista, cega e arrogante, é uma insensatez. Ao que parece, o nosso primeiro-ministro pouco se importa com o facto. Ungido pela maioria absoluta que o sustenta, colocou-se no seu pedestal e aí vai disto.
Ele e o seu ministro das finanças são apenas uns paus mandados da troika. São os seus homens da Regisconta, ou melhor, são os cobradores do fraque, que em troca de uma mão cheia de euros, esmifram o devedor até o deixarem exangue.
Do nosso lado, alguns ainda lhe invejam o poder, porque vivem na ilusão de que ele, o Passos, é um chefe verdadeiro. Acreditam, erradamente, que o senhor está acima das nossas misérias e inseguranças. Mas, afinal, não está. Antes pelo contrário. O sujeito, deslumbrado pelo poder, pela sua leitura messiânica, vive soterrado pela permanente angústia de o perder.
Nas finanças se consome, o homem, e nem consegue falar direito. Atrapalha-se, gagueja e hesita. Como muito bem lembra Michele Apicella no filme “Palombella Rossa”, de Nanni Moretti, “quem fala mal, pensa mal”. E ele, o nosso aflito e gaguejante primeiro, já não consegue encontrar as palavras adequadas. A quem exerce o poder, as palavras – as palavras certas – são as ferramentas que podem apontar o Norte.
Podemos ser levados a pensar que tudo apenas não passa de um problema de comunicação. Mas esta crise não é senão uma crise política. E são os problemas políticos, que este governo não sabe nem quer despachar, que estão por resolver. É isso que Pedro Passos Coelho é incapaz de compreender.
Os problemas políticos que não se resolvem tornam-se incomunicáveis. Em política, a força das palavras é decisiva. E as palavras escolhidas por Passos Coelho são de resignação e desespero. Ele não acredita nos portugueses. Ele apenas crê nos números que a troika lhe fornece.
O nosso primeiro é a principal vítima da folha de Excel do seu ministro das finanças, que nem sequer é do próprio, mas antes do seu congénere alemão, a quem ele presta vassalagem como um vulgar serviçal.
Desconfio que o nosso primeiro é homem para, à boa maneira de mais uma personagem do livro de Machado de Assis, gostar de Otello, a ópera em quatro atos do compositor italiano Giuseppe Verdi (com libreto de Arrigo Boito, baseado na peça “Othello, the Moor of Venice”, de Shakespeare) e como espectador se regalar das paixões de Otelo e sair do teatro com as mãos limpas da morte de Desdémona, mas assobiando risonho “Nini”, a medíocre cançoneta de Paulo de Carvalho.
Pedro Passos Coelho, na sua terrível teimosia de correr tudo a impostos, devia pensar duas vezes na realidade do râguebi, pois quando se começa a correr muito, logo vem alguém que nos faz uma placagem. E ele já foi placado exemplarmente pelo Tribunal Constitucional e pelo povo nas ruas.
Talvez também sonhe, ao jeito saudoso do eficaz ditador de Santa Comba, com que a maioria de nós volte para as aldeias cultivar as parcas leiras, dormindo com as galinhas e acordando com os galos por não conseguirmos pagar a fatura da EDP, nem o petróleo do candeeiro de campânula.
Estes que agora dizem que nos governam não são gente séria, são gentalha insensível. Estão para o povo como o fardo de palha está para o pão.
Pedro Passos Coelho e os seus Relvas, Cratos, Vítores e Chicos, agarraram a triste sina dos desprezíveis: Estão para nunca mais estarem, ficam agora para nunca mais ficarem.
Os nossos desejos são de que a História lhes seja leve. E o seu destino político breve. Para bem de todos. E até o deles próprios.