O Homem Sem Memória - 127
127 – Em abono da verdade, temos de dizer que a noite foi longa.
Logo após a petiscada, o digestivo, a cigarrada e a cantoria da Internacional, o Graça, provavelmente mordido pela consciência, virou-se na direção do Mário “Camões” e sussurrou-lhe ao ouvido: “Aqui, que ninguém nos ouve, vamos dar sequência à lei de Talião: olho por olho, dente por dente.” “E como?”, perguntou o Mário “Camões” com o seu olho bom a resplandecer de alegria e o outro a querer ganhar vida. “Esse tal de Talião era um homem com eles no sítio. Do tal Talião ninguém se ficava a rir.” “Olha, Mário, a lei de Talião não é um homem é apenas um princípio que se encontra no Código de Hamurabi…” “Talião ou Hamurabi, a mim tanto se me dá. O que interessa é a sua mensagem revolucionária.” “Ouve-me primeiro: As primeiras indicações do princípio de Talião foram descobertas no Código de Hamurabi, em 1780 a.C., no reino da Babilónia. Esse pressuposto permite que as pessoas façam justiça pelas suas próprias mãos e de forma igual, no respeitante ao tratamento de crimes e delitos, é o princípio «olho por olho, dente por dente»…” “Pois isso mesmo…” “Não sejas impaciente, deixa-me continuar. Esse princípio transmite a ideia de reciprocidade e paralelismo entre o mal causado a alguém e o castigo imposto a quem o causou: tal crime, tal pena.” “Boa. É isso mesmo. Vamos ali ao Bar Aurora arrear na reação e tirar, pelo menos, um olho a alguém…” “Ou um dente”, disse a rir o Graça. “Não, um dente não”, alvitrou desgostoso o Mário “Camões”. “Um olho. Apenas um olho. Um olhinho apenas.” “Tu podes não ser comunista, mas lá que és determinado, isso ninguém o pode negar”, concluiu o Graça. E continuou: “O que podemos fazer é enfiar umas meias de vidro na cabeça e…” “…E assaltar um banco, ou o Bar Aurora e arrancar um olho a algum burguês, ou ainda uma ourivesaria e recolher fundos para comprar armas para fazer a revolução. A verdadeira revolução. Não essa merda de revolução dos revisas que consiste em colar cartazes, redigir comunicados, pintar paredes, mandar uns bitaites nas reuniões das associações, nos sindicatos ou nas reuniões do partido… Já agora o que é que quer dizer «revisas»?”, perguntou entusiasmado o Mário “Camões”. “Olha lá, tu queres aprender tudo numa só noite? Ouve-me com atenção. Podemos enfiar umas meias de vidro na cabeça e ir arrancar os cartazes dos reacionários…” “Eu estou entusiasmado é com o Talião, ou Hamurabi ou lá que merda é…” “Olha lá, eles arrancaram os olhos ou os dentes a alguém? Arrancaram?” “Não mas…” “Aqui não há mas nem meio mas. Tu queres ir para a prisão? Sabes, por acaso, de algum comunista que tenha arrancado os olhos a alguém? Sabes?” “Não, mas sei que o Partido defende que é preciso partir os dentes à reação. O próprio Otelo disse que talvez não fosse má ideia meter os reacionários no Campo Pequeno. E não estou a ver que ele estivesse a sugerir que era para assistirem a uma tourada à antiga portuguesa. Inclino-me a pensar que imaginava o mesmo que eu: que é necessário eliminar os reacionários à lei da bala. Ou revolução ou reação…” “Eles arrancaram-nos os cartazes, nós podemos ripostar arrancando-lhes os deles. E assim estamos a cumprir com a Lei de Talião…” “…Mas não com as da revolução”, respondeu o Mário Camões com o olho bom a deitar chispas. Ao que o Graça ripostou: “A mais não vou. E com isso já estou a infringir os Estatutos da Partido, nomeadamente o artigo 33º e o 34º, arriscando uma sanção disciplinar…” “Talvez a alínea b) do artigo 37º e por isso baixares de escalão”, disse como quem não quer a coisa o José. No que foi amoestado pelo Graça: “Não te metas onde não és chamado.”
Alguns bêbados mais tardios encontraram a célula comunista de agitporp de Névoa sentada nos bancos do jardim a fumar uma cigarrada em silêncio. Depois de fumarem a primeira cigarrada fumaram uma segunda e uma terceira. Sempre em silêncio. Logo após, o Graça resolveu levar a sua proposta a votação, mesmo contrariando as diretrizes do Partido, onde nada se votava sem primeiro se consensualizar, que o mesmo é dizer que tudo se decidia sempre antes de votar. A sua proposta ganhou, não por unanimidade unânime, como era tradição, mas sim por unanimidade irregular com um voto contra, o do Mário “Camões”, e uma abstenção, a do Carlos Chouriço.
Enfiaram então as meias na cabeça e, quais heróis revolucionários cinematográficos, foram-se aos cartazes dos partidos reacionários e rasgaram-nos com toda a fúria subversiva de que eram capazes. Rasgaram os que estavam mais à mão de semear, mas também os que se encontravam colados nas paredes altas e derrubaram inclusive os que permaneciam colados em placas de contraplacado e pendurados nos postes. Para não deixarem rasto algum, nem a mínima suspeita, retalharam também os do seu Partido, e que tanto trabalho lhes tinham dado a colocar, assim certinhos e direitinhos. Entretanto foram deixando pintado nas paredes o símbolo dos anarquistas, um “A” inscrito num círculo.
Para rematarem a anarquia, galgaram os muros do Liceu e foram pichar as paredes da antiga parte feminina com uma frase naif que dizia assim: “A virgindade provoca o cancro, vacina-te.”
Depois de ler o escrito com o seu olho vivo, o Mário “Camões” perguntou ao Graça: “O que é isso da virgindade?” Ao que o José, por puro exercício intelectual, tentou responder: “A virgindade tem tudo a ver com a Virgem.” “Qual?”, questionou o mesmo Mário. “Pois, com a Virgem Maria, que concebeu sem pecado”, respondeu evangelicamente o José. “Deixa-te de merdas filosóficas e vai direto ao assunto”, foi direto às dúvidas sobre o assunto o camarada Mário.
“Deixa-me rematar o escrito que logo to explico”, respondeu o Graça com a disponibilidade subversiva que conseguiu arranjar.
Da conversa filosófica que se originou a seguir pretendemos dar-vos conta no capítulo subsequente. Isto se formos capazes. Do que duvidamos, mas vamos tentar. Para isso é que aqui estamos. Quem não quer ser narrador não lhe veste a pele.