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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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16
Nov12

O Homem Sem Memória - 134

João Madureira

 

134 – Depois do triunfo da razão em Ribeira de Pena, o Partido a nível regional ganhou nova alma. Os comunistas em Trás-os-Montes podiam até ser poucos, mas eram bons, corajosos e íntegros. Embora em vilas como Ribeira de Pena se pudessem contar pelos dedos de uma mão, isso não queria significar que não constituíssem uma força política emergente, digna de crédito, disciplinada, respeitada e respeitadora das mais amplas liberdades. Isto apesar de os reacionários na nossa província serem como as moscas da, com vossa licença, merda, muitos e incómodos como o carvalho. Isto para não dizer outra coisa.


Vai daí, entre namoricos com a independente Isabel, entre infiltrações nos movimentos autónomos e alternativos, entre a militância clandestina no Partido, e o estudo nos dias ímpares da semana, o José foi distinguido com a subida honra de organizar, dirigir e orientar uma escola de pioneiros comunistas que iria funcionar na garagem de uma camarada professora primária, para não dar nas vistas e para dessa forma poder manter o seu estatuto de independente.


A escola de pioneiros era, aos olhos do Partido, a única tarefa revolucionária compatível com a sua militância clandestina. Claro que ainda pensaram em libertá-lo de todas as tarefas relacionadas diretamente com a ação partidária, mas em Névoa os camaradas com qualidades eram tão poucos que até os clandestinos tinham de ajudar nas tarefas planeadas pela direção regional. Ou era isso ou então tornava-se impossível cumprir com o programado. E os comunistas são políticos que cumprem sempre os seus planos, sejam eles mensais, trimestrais, semestrais, anuais ou quinquenais.


Quando o Graça lhe deu tão boa notícia, o José limitou-se a ficar desiludido, muito desiludido mesmo. Para garotos já lhe chegava aturar os irmãos que eram muitos e com feitios diversos e pouco abrangentes. O Graça, vendo-o remexer-se como se tivesse sido tocado por um ramo de urtigas, levou-o ao bar do Aníbal e tratou de lhe levantar o ânimo.


Ainda antes de sorver o primeiro golo da sua espumante imperial tirada pelo próprio “Goela Grande” – que além de ingerir canecas de cerveja como o fazem os camelos quando encontram um poço de água barrenta no meio do deserto, sacava finos com subida arte –, disse-lhe com voz de verdadeiro dirigente do partido da classe operária: “Educar comunistas desde a mais tenra idade é uma das tarefas mais delicadas e nobres que um marxista-leninista pode exercer. Por isso só te podes sentir honrado com tão subida distinção.” Ao que ele respondeu: “Não me fodas a paciência.” E o Graça: “Vá lá, não precisas de ser indelicado.” E o José: “Para mim estão guardados todos os papéis de parvo.”


Embezerrados como estavam, entretiveram-se a beber as imperiais, a debicar os tremoços, a cuspir os caroços das azeitonas e a sacudir das calças os pedaços das cascas torradas dos amendoins.


Vendo-os amuados como dois asnos acorrentados ao mesmo madeiro, o Aníbal pediu licença e sentou-se à mesa pousando lá uma segunda caneca a transbordar de espuma, enquanto escorropichava a primeira que trazia na outra mão. Ato contínuo arrotou, peidou-se com graça e de seguida fumou um cigarro. Logo após, bebeu a segunda caneca de cerveja de uma assentada, arrotou, deu novo peido e fumou outro cigarro.


Vendo que na mesa os copos estavam vazios e os dois camaradas e amigos continuavam a emburrar na sua calada teimosia, levantou-se e foi fazer aquilo que lhe competia. Tirou mais dois finos e outra caneca de cerveja com a devida arte revolucionária que já todos lhe reconhecemos e, enquanto assobiava A Internacional, serviu os amigos com toda a delicadeza de que foi capaz. Eles continuavam calados a ruminar os tremoços, as azeitonas e os amendoins. De seguida serviu-se e engorgitou a caneca de cerveja ainda com mais rapidez do que era normal.


Os camaradas desavindos continuavam desavindos. De novo arrotou, fumou o seu terceiro cigarro e peidou-se tão artisticamente como era habitual. À terceira vez, o Graça e o José acusaram-no em simultâneo: “Porco.” “São gases, camaradas. E os gases oprimidos necessitam de liberdade”, contrapôs o Aníbal com o seu arzinho engraçado. Então os camaradas e amigos riram-se como se tivessem ouvido uma piada do Grouxo Marx. “Vão uns camarõezinhos?” Eles limitaram-se a acenar com a cabeça, pois reconheceram a proposta do “Goela Grande” como exequível.

 

Já em ambiente de descontração, e depois de beberem uma dúzia de finos, seis canecas de cerveja, comerem um quilo de camarão e o Aníbal ter fumado mais três cigarros e dado três peidos muito a modinho, apenas para manter o estilo e a tradição, o anfitrião perguntou qual era afinal o problema. O Graça contou-lhe o que todos já nós sabemos e o José fez o mesmo.


Foi então quando o Aníbal veio em socorro do José para contento do Graça. E disse: “Afinal é uma forma de utilizares as capacidades que desenvolveste no seminário. No fundo, a escola de pioneiros comunistas é a modos como a catequese para os católicos. É uma forma de moldar o saber e a personalidade dos mais jovens dos nossos camaradas. É a maneira de os doutrinar, possibilitando-lhes uma formação sólida e de qualidade, fornecendo-lhes ferramentas que lhes abrirão as portas ao conhecimento do marxismo-leninismo de forma cuidada e permanente.”


“É isso mesmo, camarada Goe… Aníbal. É isso mesmo. Imagina José, o avanço que podes permitir a todos esses pequenos camaradas para que possam vir a ser verdadeiros revolucionários. E sem hesitações. E sem dúvidas. É de pequenino que se torce o pepino”, adiantou o Graça. Ao que o camarada José contrapôs: “Mas não vos ouvi dizer que a catequese e o batismo definiam cedo de mais a orientação religiosa de uma criança, pois, enquanto pequenos, não possuíam capacidade crítica, nem conseguiam compreender, quanto mais optar, em assuntos desta natureza? Deus para elas é uma abstração…” “Também para os adultos Deus é uma abstração”, contrapôs o Graça. Esta frase teve a concordância do Aníbal que aproveitou a deixa para ir buscar mais dois finos e outra caneca.


Ainda antes do “Goela Grande” arrotar e etc., o José teve oportunidade para insistir que uma escola de pioneiros comunistas era bem capaz de ser uma violência para a pequenada. E confessou: “Sim, Deus é uma abstração para as crianças e até para os adultos. Mas temos de reconhecer que o marxismo-leninismo não o é menos. Estou mesmo em crer que a teoria comunista é até bem mais abstrata para as crianças do que o catolicismo. Explorados e exploradores, lutas de classes, meios de produção, ditadura do proletariado, o próprio proletariado, a pequena, a média e a grande burguesia, o processo histórico, a dialética e outros conceitos, são coisas que não desenvolvem a imaginação. São conceitos tão rebuscados, são preconceitos tão arreigados que…”


“Alto e para o baile. Lá estás tu com os teus desvios ideológicos. Ai José, José, nunca mais te emendas. Num país socialista estavas na prisão a aprender a não ter dúvidas. Mas ainda bem que vivemos numa democracia burguesa e és meu amigo, senão…”


“Com a verdade me enganas, meu Judas traiçoeiro. Preferia dar catequese às crianças, pois elas até podem achar o conceito de Deus abstrato, mas consideram a ressurreição e os milagres histórias de encantar. Agora falar-lhes de pobreza, de lutas de classes, de sacrifícios, de violência e de morte aos reacionários, parece-me excessivo. Deixem as crianças ser crianças.”


“Mas essas crianças são filhas de comunistas. E os seus pais querem educá-los sob os princípios do materialismo dialético, do marxismo-leninismo, do comunismo.”


“Razão tem o Aníbal, a escola de pioneiros é a catequese dos comunistas. Quando é que lhes pode ser ministrada a primeira comunhão? Será que o camarada Alberto Punhal vem cá para os crismar?”, provocou o José.


“Crismar não sei, mas com toda a certeza que lhes distribuirá um lenço com a foice e o martelo para eles colocarem ao pescoço.”


“Pagam?”, perguntou o José. “É que preciso de dinheiro para comprar as obras completas de Brejnev.” “Não me provoques. Ouviste?” “Ao menos perdoem-me as cotas. Ou paguem-me a assinatura d’A Verdade ou da Vida Soviética.” “O único que prometemos é arranjar material e deixarmos-te levar para casa o volume encadernado de O Militante.” “Ah, vão comprar baldes de praia e cromos de futebol para os ensinarmos a colar cartazes?” “Não, vamos comprar metralhadoras e granadas de plástico para os treinares na nobre arte da guerrilha revolucionária.” “Também tenho de lhes ensinar a cantar os hinos do partido?” “Sim, tens. E também a gritar PC, e a pôr o punho no ar com toda a força e toda a convicção do camarada Punhal.” “Só aceito se me for permitido fazer parte da lista da Isabel e não tiver de relatar nada do que de mais íntimo possa acontecer entre nós.”“Sendo assim, podes amanhã mesmo iniciar as aulas na nossa escola de pioneiros. E que Deus Marx e Cristo Lenine estejam contigo.” E o Aníbal, vendo que as negociações tinham chegado a bom termo, finalizou dizendo: “Ide em paz e que o comunismo vos acompanhe.” “Falta-nos pagar a conta.” “A conta já está paga. Faço questão.”

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