O Poema Infinito (121): a grande solidão dos sonhos
Hoje é o sexto dia da criação, a sexta morada do silêncio inicial. Por isso cito os nomes dos bichos e das flores e escrevo num caderno a sua implícita significação. E anoto os sentimentos que me sugerem: melancolia, tristeza, alegria, ternura. E recopio tudo para a tua pele. Tu manténs a imobilidade absoluta da beleza. Os teus olhos abrem sulcos nos meus. E o teu rosto dispersa-se pelo jardim e o vento recolhe a dor da morte que se concentra na penumbra do entardecer. Releio tudo e observo o frémito intenso da luz que se esvai. Com a ponta dos dedos toco no teu corpo e sinto-o a falar com o meu em surdina. Por isso escrevo no teu o meu desejo com tinta permanente. E de vez em quando sublinho as palavras que se confundem com o latejar dos nossos corações. E a memória enrola-se em imagens impercetíveis. Anoitece. E com a noite vem a solidão, a obscura solidão da sonolência. E as paredes balbuciam poemas do tempo maduro. Lembramo-nos dos verões prolongados da nossa afeição, com os sexos aflitos, com as bocas triturando beijos, com a lua seduzindo rios, com o cio a subir por dentro de nós como a cobra bíblica do mal. E nós como anjos aflitos transmitíamos um ao outro todo o amor que é possível arrecadar nas estações quentes. Agora falamos do tempo com os olhos presos nos filhos e do futuro com os pensamentos fixos no desespero. E murmuramos desejos incompletos e olhamos em silêncio o tempo dos sorrisos. E tocamo-nos brincando com as mãos como o fazíamos quando éramos crianças descalças que chapinhavam na beira do rio. Presentemente já nos demoramos nos sorrisos que não nos apetecem e olhámos para a foz do rio em vez de o fazermos na direção da nascente. Somos como páginas ainda legíveis que se vão tornando ilegíveis. O sonho agarra-se à esperança do regresso. Mas os nossos rostos são atualmente mapas tristes. Agora fazemos promessas e sorrimos só deus sabe porquê. É como se tivéssemos os lábios viciados pela amargura. Todas as flores nos parecem amores imperfeitos. E a alegria tem o luminoso sabor a sal. Descobrimo-nos no silêncio cúmplice das palavras. Somos como a água magoada que reflete o cansado choro das magnólias. O tempo encobre-se para lá das portas da casa que atualmente permanecem quase sempre fechadas. E pelas janelas por onde entrava o verde da primavera presentemente só avistamos nuvens espessas que ensombram os dias e enegrecem a terra. No entanto, do nosso posto de vigia continuamos a olhar a rota das aves no céu. E as aves percebem-nos e tornam-se vibráteis. Sim, ainda é cedo para começarmos a matar palavras. Devemos tentar mais uma vez ortografar paisagens e descrevê-las minuciosamente como se fossem corpos vivos e transparentes. Por vezes, quando a solidão se torna maior, desenhamos escadas à medida da ausência e esperamos. Uma coisa se impõe como necessária: a grande solidão dos sonhos.