O Poema Infinito (122): prelúdio e invocação
Olho até cristalizar a tua transparência, a transparência dos dias e a transparência das raízes. Tento condensar todos os possíveis. Tento que a água e o fogo te lambam as mãos, os pés e o desejo. E fotografo-te a libertares-te da roupa lenta com gestos rápidos. Só os animais que se desejam conseguem vibrar juntos. Nem a distância nos perturba. Nem a distância nos afasta. Nem a distância nos distancia. Por isso fabrico versos alisados pelo alfabeto e temperados com a impaciência branda do tempo. Habitas-me a memória, por isso ela se reproduz como o eco dos gritos das sereias na profundidade dos mares. Uma carga semântica explode no silêncio da noite. E a noite chora. Mergulhamos no céu da terra à velocidade dos feixes iluminados. O teu olhar ganha novo significado. Tanta informação mata o prazer. Por isso o teu rosto se cobre de sol e se agarra ao vento e chora lágrimas tão precisas como metáforas. A lentidão introduz a triste organização do abandono. As palavras constroem-se fora de toda a lógica. E a sua ferocidade é transportada numa procissão de sofismas. E o desejo submete-se ao desespero. Por isso os nossos olhos respondem ainda ao desgaste da luz. Invoco a liberdade e invoco o seu som. Invoco a natureza e invoco os campos e as formas bucólicas e os precipícios e as ideias em folha e invoco também os preceitos e a memória de deus e o som dos sinos das aldeias. E invoco a combustão e a penúria, os frutos escritos nas entranhas das árvores e a culpa, toda a culpa, toda a santíssima culpa oculta nas vozes dos mortos, e a violência da sombra e a avidez da luz e todos os sistemas políticos do mundo. Invoco o maneirismo da destruição, as coisas que perturbam, a música inoperante, os fragmentos do quotidiano, o fascínio pelos papéis, a precisa velocidade das asas dos pássaros, a filosofia do fastio. E invoco ainda a brincadeira dos cães e os lábios gélidos da vida e o perfume silencioso dos gestos amorosos e a cortesia tímida das conversas e as palavras maduras e as palavras luminosas e as estações transparentes. E invoco igualmente as árvores que falam e o desassossego da fantasia e a fresca ansiedade da certeza e a preguiça patética do sono e os fragmentos do apocalipse e as medidas preventivas dos filhos da puta e os pensamentos enrodilhados nas gargantas dos domingos sacrílegos e o sorriso natural do entendimento e as minúsculas partículas de deus e os filhos do desassossego. E invoco a seminal geometria dos pénis e a notável interpretação das vaginas. E invoco para sempre a explosão nuclear da criação. E a saudade das formas. E a forma das saudades. E o choro convulsivo das metáforas. E o corpo esbelto das ninfas que comem palavras em suspenso. E invoco, para que conste, a tristeza antiga da morte, a dolorida alegria da vida, o pânico das árvores encolhidas. E finalmente invoco a beleza fulminante das pessoas que já desapareceram e que nunca mais voltarei a ver. Por isso continuo a olhar até conseguir cristalizar a tua transparência. Toda a tua transparência. Absolutamente toda a tua transparência.