Pérolas e diamantes (21): depois do nevoeiro, o sol
Olho lá para fora, na direção do Brunheiro, e apenas avisto um telhado e uma antena parabólica. Tudo o resto é nevoeiro. Um nevoeiro denso e frio como apenas se sente em Chaves. O sol não se viu durante todo o dia. Na rua está um frio de rachar. É inverno. É janeiro. É natural. É a vida, como gosta de dizer o meu filho João Vasco.
Pego no livro de Mo Yan, “Peito Grande, Ancas Largas” e fixo-me na primeira página onde apenas está escrita uma dedicatória: “Ao espírito da minha mãe”. Duas lágrimas pequeninas, mas muito densas, fazem-se-me nos olhos. É do frio. Quem já não tem mãe tem por vezes muito frio. E então se for de inverno tem frio a dobrar. É a vida, como gosta de dizer o meu filho João Vasco.
Olho de novo lá para fora e a fotografia é a mesma: nevoeiro, frio e Brunheiro nem vê-lo. Concentro-me na leitura: “O teu pai falhou porque foi demasiado brando, demasiado bondoso.” De novo outras duas lágrimas tão pequenas e densas como as primeiras ou ainda mais fazem-se-me nos olhos. É do frio. Tem de ser. Eu não sou propriamente um sentimental. Claro que é do frio. Quem já não tem pai vai para umas décadas, sente frio. Muito frio. Sobretudo no inverno. É janeiro. É inverno. É natural. É a vida, como gosta de dizer o meu filho João Vasco.
Volto à leitura: “Por isso, não te esqueças: se quiseres ser um homem mau, tens de matar sem piedade; e, se quiseres ser um homem bom, terás de andar sempre de cabeça baixa para não pisar as formigas. O que jamais deverás ser é um morcego, que nem é ave nem é rato. Não te esqueces disto?”
“Se quiseres ser um homem bom, terás de andar sempre de cabeça baixa para não pisar as formigas”. Mais duas pequenas e densas lágrimas se fazem nos meus luzeiros que hoje se molham com uma inusitada frequência. “Estás mas é a ficar velho e sentimental”, penso cá com os meus botões. Mas também é do frio. Sim. É do frio. Lá fora está um frio de rachar. É inverno. É janeiro. É natural. É a vida, como gosta de dizer o meu filho João Vasco.
Dou-me conta que dentro de casa a temperatura está agradável. Então é sugestão. O nevoeiro. O frio. O sol que não aparece. O Brunheiro que se mantém embuçado. Enfim, a melancolia de um fim de tarde. Sim. É isso.
Recordo-me agora que o meu pai andava sempre de cabeça baixa, olhando sempre para o chão, eternamente envolto numa ténue nuvem de fumo que o cigarro lhe conferia. Foi com ele que aprendi a não pisar as formigas.
Mais duas pequenas e densas lágrimas se formam nos meus olhos. Levanto-me e vou beber um copo de sumo de laranja. Mau Maria, os indícios fazem-me pensar na política. Sento-me de novo. Era o que mais faltava. Juntar mais frio ao frio, juntar mais nevoeiro ao nevoeiro. E com o inverno que grassa por esse país fora, o melhor é desistir. E já.
Só que ninguém lê em vão. “O que jamais deverás ser é um morcego, que nem é ave nem é rato. Não te esqueces disto?” Sim, Mo Yan. Sim, pai. Não me esqueço. Eu também olho sempre para o chão para não pisar as formigas. E não quero ser morcego. Mas olhem que eles abundam no nosso país.
Com o copo meado de sumo, olho para um recorte de jornal onde Mota Amaral critica Passos Coelho, chamando a sua atenção para o “alastramento de uma verdadeira catástrofe” em Portugal, onde, a cada dia que passa, a indignação dos cidadãos cresce, porque “não veem nem finalidade nem fim para os cortes de benefícios”. “A situação geral do País em vez de melhorar, como o Governo promete (…), tem vindo a degradar-se e basta ter os olhos abertos para comprovar o alastramento de uma verdadeira catástrofe”.
Olho bem para o artigo para confirmar. É mesmo de Mota Amaral, deputado do PSD e ex- Presidente da Assembleia da República. Desta vez as lágrimas não nascem nos meus olhos. Mas uma indignação fria como o dia tomou conta de mim. E tremo. E desta vez não é de frio.
E a indignação ainda cresce mais quando leio no jornal que a maioria dos 164 contratados pelo Executivo de Pedro Passos Coelho, todos eles entre os 24 e os 29 anos, ganha o dobro de um técnico superior da função pública.
Enquanto escrevinho este arrazoado que não sei bem onde me vai levar, lembro-me de uma reportagem que vi na televisão dando conta da manifesta incapacidade dos surdos-mudos poderem aceder aos pedidos de emergência através do 112. Agora que me veio à memória, reconheço que a comparação é pertinente. Por vezes, relativamente àquilo que escrevo, também me sinto surdo-mudo gritando desesperado ao telefone por ajuda.
Lembro-me de um grande amigo que uma vez me disse, entre a ironia e a confissão, que foi precisamente por se ter encontrado tantas vezes com o fracasso, que não existia ninguém mais hábil do que ele em escondê-lo e a suportá-lo com resignação. “Por isso”, dizia ele sorrindo amargamente, “é que cumprimento ainda com mais efusão os idiotas e lanço sobre os meus amigos um olhar afetuoso”.
Lá fora o nevoeiro ainda se tornou mais denso. O frio aumentou. O Brunheiro desapareceu definitivamente. Até a antena parabólica se esfumou. Apenas uma pequena parte do telhado da casa continua visível. É inverno. É janeiro. É natural. É a vida, como gosta de dizer o meu filho João Vasco.
Penso na cidade. Como não a vejo, imersa que está no nevoeiro, recordo-me do Jardim das Freiras ou do Largo do Arrabalde. Fecho os olhos e sorrio por momentos. Depois mais duas lágrimas surgem nos meus olhos.
A minha cidade, a nossa cidade, essa cidade que todos aprendemos a amar, por obra e graça de uns morcegos, foi demolida à nossa frente, ali mesmo debaixo dos nossos olhos, debaixo da nossa indiferença, debaixo das promessas falsas, debaixo de uma ideia parola de novo riquismo, debaixo de uma ilusória promessa de desenvolvimento. E tudo ruiu.
A fantasia chegou ao fim. A obra dos morcegos aí está. Quem tiver a coragem dos néscios que os acompanhe. Esse é o caminho do insucesso, a senda do imobilismo, o domínio dos indiferentes, daqueles que não têm memória, que não têm apego às suas raízes, que não honram nem a palavra, nem a verdade e muito menos a nobreza da alma flaviense. Dez anos de fogo-fátuo, de imobilismo e de hipocrisia já bastam.
Apesar das promessas, o poder autárquico atual nem modernizou a cidade nem a devolveu aos cidadãos. Limitou-se a descaraterizá-la.
Basta de nevoeiro. Amanhã é bem possível que o sol espreite logo de manhãzinha. Esta noite vou sonhar com o Jardim das Freiras. Talvez para o ano que vem, o Pai Natal mo traga no sapatinho.
É verdade que nunca nos banhamos duas vezes na mesma água do rio. Mas também é bom que se diga que nunca vemos duas vezes com o mesmo olhar.
É hora de recuperarmos a nossa identidade.