Pérolas e diamantes (22): enganos e desenganos
«Na verdade, quando considero qualquer sistema social do mundo moderno, não vejo neles, assim Deus me perdoe, senão uma conspiração dos ricos, para servirem o melhor possível os seus interesses, sob o pretexto de organizarem a sociedade. Procuram todos os tipos de habilidades e artimanhas, em primeiro lugar para manterem a salvo os seus lucros mal adquiridos e, em segundo lugar, para explorarem os pobres, pagando-lhes o menos possível pelo seu trabalho.»
Sabem quem escreveu isto? Não, não foi Karl Marx ou outro perigoso socialista do mesmo calibre. Foi Sir Tomás Morus (Thomas More) no seu livro “Utopia”, publicado, imaginem só, em 1516. O mundo, afinal, passados quase cinco séculos, continua o mesmo, um lugar pouco recomendável para gente boa, honesta e trabalhadora.
Desenganemo-nos! Os usurários e os ricos continuam idênticos e a utilizarem as mesmas receitas de sempre. E os seus lacaios também não enganam ninguém. Pedro Passos Coelho e os seus colegas de Governo continuam a ser os capatazes que fazem o trabalho sujo.
O relatório terrorista do FMI afinal é um embuste. E dizemos que é um embuste porque, mesmo tendo a chancela dessa instituição capitalista, é, na prática, da autoria de 10 ministros e cinco secretários de Estado que colaboraram na sua elaboração.
Ou seja, o relatório é do Governo, sustentado, à falta de parceiro mais credível e menos agiota, pelo FMI. Por isso é que está eivado de orientações e preconceitos ideológicos contra o Estado, sobretudo contra o Estado Social, que o primeiro-ministro e o seu ministro das Finanças tanto detestam e pretendem destruir.
Mas a história já vem de longe e nem sequer é surpresa, pois todos estamos lembrados de Pedro Passos Coelho ter anunciado a famosa “refundação” do memorando, em Novembro, que mais não era do que a explicitação dos dados preliminares deste estudo, como agora se vê. E o mais curioso é que quando lemos o estudo do FMI, não encontramos nele nada que seja novo em relação à velha ideia de desmantelar o Estado Social ou condená-lo à morte.
Por detrás disto tudo está a velha tática de lançar o barro à parede para ver se pega. Apresenta-se o pior cenário possível para depois recuar um pouco para dar uma sensação de vitória à oposição. Ou seja, é uma estratégia de labregos para labregos. É a técnica dos vendedores de banha da cobra: começam por pedir um dinheirão pelos seus produtos para no final os deixarem por um preço razoável. Vivemos num tempo em que o valor das palavras se perdeu.
Paulo Portas veio, com a suas falinhas mansas de chefe dos escuteiros, dizer que “há sintomas de desalento e desânimo na sociedade portuguesa, que é preciso contrariar com sensibilidade”.
Ainda estava o homem a pronunciar estas palavras quando um senhor chamado Moedas, em direto na televisão, veio dizer, com um sorriso tolo estampado no rosto, que o relatório do FMI está “muito bem feito” e que teve o contributo do Governo. Foi o bastante para que os ânimos no PSD se incendiassem, tendo Carlos Carreiras, um autarca muito próximo do primeiro-ministro, pedido a demissão do tal senhor Moedas que, para mal dos nossos pecados, é secretário de Estado adjunto do PM.
Além disso, o famigerado relatório do Governo, com a chancela do FMI, é desonesto. Intencionalmente desonesto, o que é ainda mais grave. O ministro Mota Soares afirmou mesmo que parte de “pressupostos errados”. O reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa, afirmou que os autores do documento utilizaram o que na universidade se ensina os alunos a não fazer: “Partir de um preconceito, de uma teoria, e depois mobilizar os números para a defender.”
Segundo o mesmo catedrático, os senhores que elaboraram o relatório do FMI “põem os dados que lhes interessam e quando isso não acontece não os citam e isso é inaceitável.” Mentiram sobre o valor das propinas, mentiram sobre a percentagem do produto interno bruto gasta na despesa com a educação, distorceram os níveis de literacia dos nossos jovens de 15 anos nos testes PISA, fizeram comparações ardilosas, outras incorretas e outras ainda completamente desfasadas da realidade atual. Mas não são apenas os dados da Educação que estão viciados e desatualizados, os da Saúde sofrem do mesmo mal.
No relatório tudo tem uma intenção: o de reduzir praticamente a zero a rede social do Estado. Pondo o povo português no dilema de morrer na forca ou atravessado pelo gume de uma espada. Ou, como disse Jerónimo de Sousa, tendo toda a liberdade para poder escolher a árvore onde vai ser enforcado.
Todo o documento está eivado de uma sanha ideológica contra os funcionários públicos, os desempregados, os reformados e os pensionistas. E convém também dizer a verdade toda: O Estado detém funções que exigem qualificações que o setor privado não pode fornecer, como são os casos dos militares, forças de segurança e magistrados.
No Estado laboram dos profissionais mais qualificados do país. Nos setores da Saúde e da Educação, abertos já à iniciativa privada, muitos dos profissionais que trabalham fora da Função Pública auferem ordenados muitas vezes semelhantes ou mesmo mais elevados do que os funcionários públicos. E todos sabemos que a escola pública e os hospitais públicos, salvo raras exceções, fornecem mais e melhores serviços do que os privados.
Mas o mais chocante disto tudo é que a proposta do Governo limita-se a apostar apenas numa via de sentido único: a do empobrecimento das pessoas e das famílias, a da falência da proteção social, reduzindo-a ao assistencialismo. Falta pouco para assistirmos ao regresso do jogo da canastra e do bodo aos pobres.
A divulgação do relatório do FMI serviu apenas uma estratégia: a do terrorismo social. Primeiro incute-se medo, muito medo, porque tudo é passível de acontecer: reduzir reformas, aumentar os despedimentos na função pública, diminuir o subsídio de desemprego, cortar ainda mais nos vencimentos, aumentar ainda mais as taxas moderadoras para níveis incomportáveis para a maioria dos portugueses e, para terminar, a bomba de neutrões, o despedimento de uma assentada de 50 mil professores. Depois tenta-se dourar a pílula, aliviando aqui e ali a carga. Mas pouco para não nos habituarmos mal.
Para não parecer desonesto de todo, o Governo de Pedro Passos Coelho veio com a ficção política de querer dialogar com os parceiros sociais e os partidos políticos da oposição, nomeadamente o Partido Socialista, que distingue como um “partido do arco da governação”. Afirma que pretende debater as funções do Estado e a sua reforma. Mas tudo isso é fogo de vista. O governo do PSD/CDS apenas deseja cortar a torto e a direito na despesa do Estado cerca de 4 mil milhões de euros, que foi o montante que negociou com a troika na sequência da quinta avaliação da derrapagem orçamental de 2012.
Mas uma pergunta se impõe: Porquê 4 mil milhões e não cinco ou seis mil milhões, ou outra quantia qualquer? Como chegou o Governo a este número sagrado? Este é um mistério insondável que nem Pedro Passos Coelho, nem Vítor Gaspar, nem o PSD nem o CDS, e muito menos o FMI, se deram ao trabalho de esclarecer.
Pedro Passos Coelho disse para quem o quis ouvir que o relatório do FMI não é a Bíblia do Governo. Talvez não seja a Bíblia, mas é bem possível que seja o seu Alcorão. Os fundamentalistas têm destas obstinações.