O Poema Infinito (131): o enigma da luz e do desejo
Espero muito quieto que as palavras resolvam a súbita metamorfose da ferocidade que se acendeu nos teus olhos. Os animais respiram a luz imensa do dia e exalam constelações e escondem os corpos que respiram dédalos de ansiedade. Palavras adolescentes vão colorindo os sorrisos e os amantes alcançam a visão perfeita do apocalipse. As palavras ciciadas são a janela que permite uma visão perfeita para o início. Toda a vida é uma grafia de águas amnióticas. As crianças gatafunham as suas folhas com cores amargas. E sorriem. E eu regresso a casa onde a humidade faz o seu caminho de descomposição. Morcegos dispersam-se emaranhados nos seus voos devassos. O silêncio derrete-se. A loucura derrete-se. E a morte entorpece o meu olhar no instante em que revejo o caminho do tempo. O teu rosto não me engana. Suponho que vai amanhecer de novo. Sou eu quem inventa o teu sono, quem te segreda a colheita e a apologia dos sonhos. O mundo continua a expelir todos os desastres possíveis. E eu recolho na concha das minhas mãos as lágrimas dos que sofrem. A cama conhece a memória do teu corpo. Por isso o tempo da tua ausência é ainda mais demorado. O amor desenvolve-se agora pelo cheiro a giestas verdes. E a noite, quando vem, traz novamente o esquecimento da voz. Persigo-te com as mãos abertas no vácuo onde o teu rosto se revela como uma fotografia de claridade. Os objetos ficam com o seu interior sombrio. Alguém canta dentro da minha cabeça uma canção de abandono. O nosso sonho é invadido pela sede e pelo desejo. A noite cai em cima das flores como se não as amasse. E as flores dobram-se dentro da sua cor. No céu uma utopia de ave arrisca um voo de morte. A noite pertence ao seu fulcro. Esta é a hora das alucinações, onde se derrama o sémen à velocidade do desejo. E o desejo grita. E o desejo finge que abranda. Lentamente, os meus dedos aperfeiçoam a arte do afago e param quando sussurras. Então deslizo pelo denso espaço das tuas coxas com a mobilidade dos aflitos. Este silêncio não se consegue escrever. De repente, os dedos escavam um sexo numa espiral infindável de dádiva. Posso distinguir o teu corpo pelo rumor do meu. As ilhas chegam com o início da memória. É o momento certo para abandonarmos os corpos que se agitam na sua respiração entrecortada. Crescem-nos asas nos olhos e as palavras atingem o imperceptível estrépito da lucidez. Desce o luar com a cor cinza do desespero. Os corpos reconhecem o seu sítio. Tocamo-nos novamente olhando para o mar azul da fotografia. Adivinho-te os sonhos cobertos de veludo. O ar continua impregnado de desejo. O teu rosto sussurra orgasmos. A manhã aproxima-se da janela. A memória dorme. A boca escreve uma nova melancolia. Lá fora os insetos elevam-se para o cimo das árvores e são comidos pelos pássaros. Eu espero pelo sono. A paixão transforma-se num gesto vegetal. A imobilidade é quase absoluta. A noite constrói um túnel para libertar a madrugada. Ei-la que chega, luminescente. Aperto-te os seios para me proteger. O tempo transforma-se na sua seguinte metamorfose. O tempo ergue-se na sua agonia infinita. O tempo lavra os nossos corpos em lume brando. Soergo-me devagarinho e lambo-te os lábios como quem colhe flores estupefactas. Não consigo sair daqui, por mais que tente. Respiro-te entre a ternura e a destruição. Espero que o vento nos espalhe pelo enigma da vida.