O Homem Sem Memória - 145
145 – Mas esta história de relatórios de crítica e autocrítica, de relatórios críticos sobre relatórios de crítica e autocrítica e ainda de relatórios críticos sobre os relatórios críticos de crítica e autocrítica deram lugar a uma espiral de relatórios críticos que ainda hoje estamos para perceber onde terminou.
Podemos no entanto afirmar que, pelo menos à escala dos nossos parcos conhecimentos, o camarada funcionário se viu na obrigação de escrever um relatório sobre os relatórios que lhe chegaram às mãos, bem assim como sobre os textos livres (ou não, mas não queremos entrar aqui em polémicas desnecessárias) dos camaradas pioneiros, coisa que muito tempo lhe ocupou e que muito sacrifício lhe exigiu, tendo mesmo pedido ao camarada José para lhe realizar um esboço que ele depois remataria com a ajuda do camarada Graça.
Ora, tão intricada tarefa criou um mal-estar na concelhia de Névoa que viria mais tarde a dar que falar e a definir algumas amizades e, sobretudo, a criar muitas e definitivas inimizades. Com a agravante de que, como todos sabemos, os marxistas-leninistas quando se zangam é para sempre.
O camarada funcionário, colocado pela direção regional do Norte entre as foices, os martelos e as estrelinhas do seu partido, resolveu distribuir o mal pelas aldeias. A fazer um relatório sobre a problemática da Escola dos Pioneiros tinha de chamar à pedra cada um dos intervenientes, pois eram todos ou culpados, ou inocentes, no problemático processo do seu encerramento. Ali não podia existir meio-termo. Essa era a estratégia.
A primeira coisa que fez foi reunir a Comissão Concelhia de Névoa e solicitar a cada membro efetivo, e também aos suplentes, como não podia deixar de ser dentro de um coletivo que baseava a sua razão de ser nos consensos mais alargados, um relatório sucinto, explícito e autêntico sobre a participação de cada camarada no processo.
Quando ouviram tal proposta, todos os camaradas ficaram com cara de caso. Muitos deles apenas tinham participado no assunto da Escola ao nível elementar de uma reunião onde se discutiu quem ficava responsável pela sua direção e quem lá ia ministrar aulas. Depois nunca mais tinham, sequer, pensado nisso. Aí o camarada funcionário foi aos arames.
“Por isso mesmo é que têm de fazer um relatório crítico e autocrítico sobre a vossa falta de disponibilidade e de terem encarado esta problemática com toda a leveza pequeno-burguesa que o nosso partido tanto critica”, disse sem se atrapalhar o camarada funcionário.
“Essa é que era boa!”, exclamaram, e repisaram, muitos dos presentes. “Tu vieste para aqui com a decisão tomada e agora queres que assumamos culpas no cartório numa coisa em que não fomos tidos nem achados? Era o que mais faltava. Se existiram coisas que correram mal na escola isso é da inteira, e exclusiva, responsabilidade do camarada José.”
“Ai é? Ai é?”, interpelou ironicamente o camarada funcionário para depois responder: “A culpa é de todos nós, camaradas. Se bem me lembro, aqui todos se eximiram de responsabilidades despachando tudo para cima dos ombros do camarada Graça, ou, o que ainda é mais grave, para cima dos meus. Ninguém teve a coragem de assumir qualquer tipo de responsabilidade ou tarefa na Escola. E como nem eu nem o camarada Graça tínhamos disponibilidade para juntar mais uma tarefa às milhentas que já desempenhamos, empurraram o assunto para o camarada José, mesmo sabendo que ele era criticista, ou lá o que é, e que, portanto, podia arranjar problemas no desempenho da sua tarefa.”
O camarada pai do camarada pioneiro João, vendo que as coisas tendiam a complicar-se resolveu atacar: “Vais-me desculpar, mas quem indicou o nome do camarada José não fomos nós, foi o camarada Graça.” “Desculpa-me lá camarada, mas deixa que te faça uma pergunta: Quem são os “nós”?” Ao que o camarada pai do camarada pioneiro João respondeu: “”Nós” somos todos aqueles que não participaram ativamente na Escola de Pioneiros.” “Vês, estás a dar-me razão. Vocês não participaram ativamente, e sublinho o “ativamente”, na Escola de Pioneiros, logo recusaram-se a aderir a uma iniciativa do Partido decidida pelo Comité Central, daí o serem culpados pelo seu encerramento”, disse o camarada funcionário já um pouco fora de si. “E é sobre isso que devem falar no vosso relatório de crítica e autocrítica. Ou, dito de outra forma, para ver se os camaradas entendem melhor, no vosso relatório deve apenas constar a autocrítica, pois, pelo que estou a ver, a crítica que fazem ao processo da Escola de Pioneiros é demagógica e…” “… Pequeno-burguesa…” “… Sim, pequeno-burguesa”… “… E de fachada socialista…” “… Sim, e de fachada socialista. Obrigado por mo lembrarem. Tem a palavra o camarada Graça.”
O camarada Graça tomou a palavra para lembrar que a decisão da escolha do nome do camarada José para dirigir, e dar aulas, na Escola de Pioneiros foi do coletivo e não dele. No que foi interrompido pelo camarada pai da camarada pioneira Lídia que lhe recordou o facto de ter sido ele quem teve a infeliz ideia de lembrar, e recomendar, o nome do seu amigo para desempenhar a tarefa.
Aí o camarada Graça deu um murro na mesa e disse que não admitia insinuações desse tipo, pois ele nunca confundiu as relações pessoais com as tarefas partidárias, ao contrário do camarada que tinha acabado de falar que travava dentro do partido uma guerra surda com outros camaradas para alcançar o desiderato de ser ele a dirigir a célula dos professores e não o camarada que atualmente desempenhava tal cargo.
Vendo que a discussão estava a entrar por um caminho nada recomendável, e muito pouco marxista-leninista, convenhamos, o camarada funcionário pediu licença para propor um pequeno intervalo pois tinha de fazer um telefonema para o Porto para contactar o seu camarada controleiro no sentido de receber diretivas mais precisas sobre o assunto em epígrafe (Perdão camaradas leitores, não, camaradas leitores não, leitores camaradas ou de outro tipo, desculpem-me a confusão. Por vezes os narradores também são vítimas da síndrome de Estocolmo, entre outras coisas.), em discussão.
Quando a comissão concelhia de Névoa do Partido Comunista se voltou a sentar à volta da mesa, o camarada funcionário estava ainda agarrado ao telefone e a escrever o que alguém lhe dizia do outro lado da linha. Foi com cara de poucos amigos que articulou o que a seguir relatamos.
“Camaradas, quero que saibam que liguei para o máximo responsável da Direção Regional no sentido de saber se existia alguma possibilidade de terminarmos com a problemática dos relatórios já aqui, pois, pelo que me apercebo, a questão pode trazer-nos vários e distintos problemas. As opiniões são muitas e diversas, mas a realidade objetiva é só uma: a Escola encerrou e, ao que parece, o Partido quer saber de quem é a culpa. E daqui não sai. Porque a responsabilidade política tem de ser de alguém. Não de uma pessoa só, mas de um organismo, já que aqui no Partido a responsabilidade, tanto nos êxitos como nos fracassos, é do coletivo, não das pessoas individualmente. Relativamente aos relatórios, infelizmente as notícias são más, todos vão ter de fazer o seu e nele vão ter de assumir a sua cota parte de responsabilidade. Disseram-me que no Partido a culpa não pode morrer solteira. E daí não saem. Daí ninguém os tira. Além disso, o camarada com quem falei disse-me que também ele, coitado, foi incumbido de elaborar um relatório que tem de entregar ao camarada que o controla para, também ele, elaborar o seu relatório que tem de entregar na sua secção que, por seu lado, vai ter de elaborar um relatório conclusivo que vai ser entregue em mão ao camarada Secretário-Geral que elaborará um relatório final para o Comité Central discutir e aprovar, para depois serem tomadas as convenientes decisões. E por agora é tudo.”
Para terminarmos o assunto da Escola de Pioneiros, informamos os estimados leitores, e os distintos companheiros de luta, que da análise do relatório do camarada Secretário-Geral resultou a destituição do camarada do Comité Central com a pasta da organização dos pioneiros, que passou a suplente da direção de um organismo regional; a transferência do camarada da direção regional do Norte para os Açores e também a deslocação do camarada funcionário do Partido em Névoa para o Minho. Ao Graça foi-lhe negada a inscrição, e participação, numa turma de militantes que iam para a URSS frequentar a Escola de Quadros e aí aprenderem a ser funcionários comunistas de primeira.
Aos restantes intervenientes no processo, o Partido resolveu não aplicar nenhuma sanção especial, limitando-se a mandar elaborar uma pequena ficha secundária, para apensar à principal, com a indicação da prática de trabalho fracionário em pequena dimensão. A princípio ainda foi aventada a hipótese de expulsar do Partido todos os elementos da Comissão Concelhia, mas isso era o mesmo que acabar com o Partido em Névoa, pois, apesar de poucos e maus, isto segundo as conversas informais dos dirigentes nacionais, eram eles que davam corpo ao Partido. Era preferível poucos e maus do que nenhuns.