21
Nov06
Fados
João Madureira
Conheci em tempos um mendigo que todas as noites se punha diante de uma montra a conversar com um manequim.
Dizia a quem passava que aquela era a sua namorada.
Quando, por vezes, o manequim desaparecia durante um dia ou dois da montra, ele, aflito, cantava baixinho os seus desvarios:
Os bons pensamentos vão-se transformando em estátuas de sal.
É o pecado.
É o medo.
Será da confusão?
Sonho com noites seladas com rododendros iluminados pelo gelo dos cristais.
Ó minha querida, choro a tua ausência.
Um dia, o dono da loja resolveu vender o velho manequim para assim se ver livre do mendigo que dava mau aspecto ao negócio.
A partir desse momento o mendigo enfeitiçado passou a ganir como um cão abandonado e, agora, pára junto de uma imagem de Nossa Senhora e canta durante toda a noite o Fado da Ladrão Enamorado, do Rui Veloso.