Pérolas e diamantes (26): obsessões
Enquanto fotografo a Rua Direita, situada bem no centro da minha cidade em ruínas, fixo-me no meu rosto refletido nos vidros das montras das lojas vazias e abandonadas e reparo na minha cara triste e magoada. Penso: Tenho a cara de feição com os tempos que correm. E tento sorrir, mas até o sorriso me sai triste.
Penso de seguida, e por um momento, nos homens que dizem que a governam e fico impressionado com tanta palavra vã e com tanto sorriso tonto. Eu sei que o hábito faz o monge, que a sela faz o cavalo, mas não sei se um fato e uma ambição desmedida fazem um bom presidente de câmara.
Obsessões, dirão uns, mas eu contraponho que não é por uma mentira ser muitas vezes repetida que passa a ser verdade. E o alardeado progresso dos últimos dez anos de gestão autárquica não passa disso mesmo, de uma mentira constantemente repetida, por muito que se afirme o contrário.
E os argumentos que se invocam são tão desfasados da realidade que chegam a ser confrangedores. E olhem que não é por evidenciarem um simplismo aflitivo. Não. O problema está mesmo na sua total falta à verdade. É claro que, como muito bem lembra António Aleixo: «P'ra mentira ser segura / e atingir profundidade / tem de trazer à mistura / qualquer coisa de verdade.»
Se tivessem existido políticas de desenvolvimento e progresso, o coração da nossa cidade não estava a cair aos pedaços, o hospital não se tinha transformado num mero centro de saúde, o tribunal não se tinha transfigurado num “juízo de paz” para brincar à justiça, nem os nossos jovens tinham rumado a outras terras à procura de um futuro que a sua lhe nega.
Sim, reconheço, essas são as minhas obsessões. Mas a maior é Chaves e a sua defesa intransigente. Essa é a minha obsessão de décadas. Por isso é que continuo a falar de coisas incómodas e de pessoas importantes. Importantes, é bom dizê-lo, no cargo que exercem, mas quase insignificantes na qualidade do seu desempenho.
Obsessivos são esses senhores que não querem largar o poder, que se agarram a ele como lapas, que utilizam todas as estratégias para calar e silenciar as vozes incómodas. Esses sim, são obsessivos e a sua obsessão destrói. Destrói casas, ruas, centros históricos, hospitais, tribunais e, o que ainda é mais grave, destrói o futuro e a esperança. Destrói a nossa juventude.
E fazem-no porque em vez de tentar compreender e dialogar com os cidadãos do seu concelho e de aproveitarem o saber dos mais capazes e sérios para defenderem a causa pública, são apenas bons a utilizar o trunfo de saber de cor o nome e a morada de todos os militantes e respetivos cônjuges e filhos, a quem, de vez em quando, fazem favores ou arranjam empregos para compensar a militância partidária. Por isso é que não existem na nossa terra associações ou instituições públicas que não sejam controladas por militantes, ou simpatizantes, do PSD. Uma mão chega, e sobra, para enumerar as honrosas exceções.
A política, para ser nobre e justa, tem de se basear na defesa de ideais e convicções e não ter um pé na demagogia e outro no arranjismo. Por isso é que os portugueses acham que quem vai para a política vai para fazer o mal e não para fazer o bem.
Eu ainda sou do tempo em que quando um homem tomava uma decisão nem duas juntas de bois o demoviam da sua intenção. E lembro-me bem que as pessoas lutavam por um argumento imparcial e não por um tacho ou prebendas. Antigamente os homens justos e honrados negavam-se a apanhar as migalhas que os poderosos, e os seus lacaios, lhes ofereciam. Preferiam passar fome. Podia faltar-lhes o pão, mas nunca lhes faltava a honra e a dignidade.
Atualmente tudo se compra e tudo se vende ao desbarato. Eu sei que a honra não se come e a palavra dada não alimenta ninguém, mas é triste ver o preço tão baixo da desonra e assistir aos saldos da palavra dada, dos princípios, da coerência e da honestidade. É triste e confrangedor.
Já me tentaram envergonhar pelos meus presumíveis excessos argumentativos em defesa de Chaves e das suas gentes, pelo meu idealismo, aconselhando-me a autocensura, ou a escrever sobre música. Mas eu não segui o conselho porque não consigo. Sou vítima dos princípios indomáveis com que fui criado. E também sei que aquela nossa tão conhecida capacidade de aguentar o inaguentável se volta inexoravelmente contra nós.
Eu milito no grupo dos que consideram que é preferível uma derrota a seguir à qual possamos eleger pessoas novas, do que uma vitória e manter os mesmos de ontem. E daqui não saio. O poder pelo poder é uma estupidez.
Para terminar, e com a vossa licença, não resisto a citar o Cântico Negro de José Régio: «"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces / Estendendo-me os braços, e seguros / De que seria bom que eu os ouvisse / Quando me dizem: "vem por aqui!" / Eu olho-os com olhos lassos, / (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) / E cruzo os braços, / E nunca vou por ali...»