O Homem Sem Memória - 152
152 – E lá foi a rapaziada dos “Canários” pregar a outra freguesia. Através de vários contactos estabelecidos com distintas associações de índole cultural, a que não era estranha a filiação partidária dos dirigentes, dos atores e do restante pessoal, arranjaram disponibilidade, e ajuda financeira, para rumarem até ao centro do país, para aí exibirem a sua arte.
Alugaram um autocarro onde transportaram as pessoas e o restante material necessário ao bom desempenho do seu trabalho e, carregados de boa-fé e muita esperança, dormiam em pousadas da juventude, comiam onde calhava e apresentavam o espetáculo onde fosse possível, bastava para tanto que existisse um palco, mesmo que improvisado, e um ponto de luz para ajudar no som e na iluminação.
Apesar do espetáculo estar pensado para exortar as massas à revolta e a participarem ativamente, primeiro na revolução democrática e nacional e de seguida na revolução socialista em direção ao comunismo, o sucesso da peça residia, quase exclusivamente, na “banda sonora”, especialmente no fado do tal povo que lava no rio e talha com o seu machado as tábuas do caixão do senhor que escreveu a letra da cançoneta. O único defeito para os especialistas na cantiga dos bairros de má fama, e pouca fortuna, de Lisboa, residia no facto de o fadista ser apenas acompanhado à viola pelo seu irmão. Guitarra nem vê-la. E um fado sem guitarra fica manco. Mas, mesmo assim, o povo aderia à modinha e punha-se a cantar ao lado do fadista com muito tino e afinação. Está claro que isto exasperava os atores e as atrizes com mais consciência política do grupo. Que o povo se identificasse, quase exclusivamente, com este tipo de cançoneta reacionária, monótona e desprezível, deixava-os desconsolados, pondo muitos deles a pensar e a comentar, se valia verdadeiramente a pena apostar no teatro como instrumento de ajuda no esclarecimento do povo que queriam libertar da ignorância e da exploração do homem pelo homem. Além disso, a letra falava em “chão sagrado”, o que revelava uma clara conotação religiosa, logo reacionária e trazia à baila um “aroma de urze e de lama”. “Aroma de urze”, ainda vá que não vá, agora “de lama”?, isto atingia as raias do mau gosto e da idiotice. Onde se viu alguma vez um aroma “de lama”? O que queria dizer o homem que escreveu o poema com tamanha alarvidade? E, como se ainda fosse pouco, tinha mesmo um verso em que declarava rigorosamente: “Deste-me alturas de incenso”. “Alturas de incenso”? Afinal, o autor pretende falar do cheiro do “incenso” ou das “alturas” do fumo? Ou a que raio se queria ele referir?
Estas e outras interrogações incómodas foram circulando de boca em boca, o que originou uma espécie de desconfiança não só em relação à música propriamente dita, mas também em relação ao duo de irmãos fadistas que se limitavam, depois do espetáculo, a beber fino atrás de fino sem se comprometerem com mais nada. Pouco lhes interessava o que os elementos mais revolucionários do grupo diziam acerca do fado.
A verdade é que o pessoal começou a desmoralizar e a pensar seriamente em acabar de imediato com aquele arremedo de peça subversiva. Para isso reuniram em plenário e debateram o tema com a seriedade exigida. A maioria votou a favor da proposta dos esquerdistas que apontavam ou o cancelamento do espetáculo ou, então, a eliminação do fado da “banda sonora”.
Os elementos dirigentes ligados ao PC ficaram fulos pois alguns dos seus militantes, ou simpatizantes, tinham votado contra os dois fadistas que, apesar de não serem propriamente comunistas de cartão, eram simpatizantes comunistas com provas dadas. Alguém lembrou que a proposta ganhadora de se acabar com a peça ou com o fado, colidia com a circunstância de o grupo estar obrigado, por contrato, a levar a efeito os espetáculos previamente definidos. Do outro lado surgiu o comentário de que o contrato não tinha validade nenhuma pois as associações que o assinaram não pagaram um mísero tostão à passarada canarinha.
Com o grupo rachado, não restou aos presentes outra solução a não ser a de darem a digressão por terminada. Depois das despedidas conflituosas e de uma que outra palavra mais viva, ou atitude mais belicosa, meteram-se dentro da carreira e rumaram caras a Névoa. A meio do caminho, e a meio da noite também, foram mandados parar por uma brigada revolucionária do exército que estava de vigia às manobras reacionárias dos adversários da revolução democrática e nacional (imaginem só quando ela se transformar em socialista a caminho do comunismo!), pois, ao que corria como informação fidedigna, é que os spinolistas tinham intentado mais um golpe para por termo à democracia participativa e ao avanço para isso que nós sabemos.
Tudo correu bem até um dos graduados ter descoberto as fotografias com o semblante de Marcelo Caetano, de Américo Tomas e de Salazar coladas em cartão prensado e pregadas em ripas. Surpreendidos com tal achado, quiseram questionar os responsáveis pelo grupo sobre a razão de tal dislate. Não seria que por debaixo do manto de um grupo de teatro popular se pretendia esconder um bando de fascistas?
Está claro que a insinuação exasperou os presentes. Foi um problema para o militar graduado se pôr à fala com algum dos responsáveis. Como o grupo estava sem diretor, ninguém quis assumir interinamente o cargo e prestar as devidas explicações a quem de direito. Quem salvou a situação foi o José quando colocou a questão sem papas na língua: “Então acham que se fossemos verdadeiros fascistas andávamos com os retratos dos nossos líderes à vista de todos? Com os ares que atualmente por cá se respiram, essa era a fórmula perfeita para acabarmos na prisão ou em frente a um pelotão de fuzilamento.”
O argumento fez com que a tensão se dissipasse e por isso os “Canários” foram autorizados a seguir caminho rumo ao seu destino.