Pérolas e diamantes (30): a loucura de Nietzsche
Começo esta crónica quase sem palavras, claramente tão poucas como as que existem no filme “O Cavalo de Turim”, do húngaro Béla Tarr, película que conquistou o Urso de Prata – Grande Prémio do Júri no Festival de Berlim em 2011 – e foi, segundo o autor, o filme que encerrou a sua carreira.
O filme começa com o ecrã em negro e com as seguintes palavras do narrador: “Turim, 3 de janeiro de 1889. O filósofo Friedrich Nietzsche sai de casa. Ali perto, um camponês luta com a teimosia do seu cavalo, que se recusa a obedecer. O homem perde a paciência e começa a chicotear o animal. Nietzsche aproxima-se e tenta impedir a brutalidade dos golpes com o seu próprio corpo. Naquele momento perde os sentidos e é levado para casa, onde permanece em silêncio por dois dias. A partir daquele trágico evento Nietzsche nunca mais recuperará a razão. Ficando aos cuidados da sua mãe e irmãs até ao dia da sua morte, a 25 de agosto de 1900.”
A seguir vê-se um cavalo a puxar uma carroça e um velho em cima dela. Depois o filme tenta recriar o percurso do camponês, da sua filha, do velho cavalo doente e a sua vida miserável. E não sai disso, metido quase sempre dentro de quatro paredes, numa contemplação aflitiva do vento e das folhas feita através de uma janela minúscula. De Nietzsche nunca mais se ouve falar, nem se sabe muito bem porque foi citado.
Eu, ao contrário de Béla Tarr, até vos queria falar do filósofo alemão, designadamente porque queria chegar a Freud, devido ao facto de andar a ler o livro de Michel Onfray, onde o autor pretende demonstrar que o pai da psicanálise é uma fraude, inspirada, sobretudo, imaginem só, em Friedrich Nietzsche. As voltas que a ciência dá!
Mas resolvi deixar essa abordagem do “Anti-Freud” para outra altura, porque a figura de Nietzsche a aproximar-se do camponês que chicoteava o cavalo e a tentar impedir a brutalidade dos golpes com o seu próprio corpo, me fez olhar para as notícias dos últimos dias e ficar em estado de choque.
Eu explico. Com a crise que o atual Governo da Nação está a impor, a golpes de chicote, ao país, e com o sucesso que todos sabemos, agora já não nos enganam vendendo gato por lebre, como nos bons velhos tempos, mas sim enfiando-nos carne de cavalo por carne de vaca.
Eu sei que a carne de cavalo até é mais barata e saudável, que é rica em ferro pois possui um maior teor de hemoglobina, sendo por isso uma forma de tratamento das anemias e até usada por atletas de alta competição. Sei ainda que tem um baixo teor calórico, ao contrário das carnes vermelhas, e que possui, comparativamente, a mesma gordura da coxa de um frango, sendo boa para prevenir, ou mesmo tratar, problemas relacionados com o colesterol.
Mas que, por causa da crise, andem a abater cavalos puro-sangue lusitano e garranos aos milhares, para consumo, deixa-me à beira do desespero.
O preço de um potro garrano varia entre os 75 e os 100 euros e o do puro-sangue lusitano atinge certamente valores mais altos.
Em 2012 foram abatidos 2.803 cavalos, quatro vezes mais do que em 2011, um aumento de 312%. No que diz respeito aos garranos, a carnificina atingiu mais de metade dos poldros do Minho.
Parece que já ninguém sabe muito bem aquilo que há de fazer. Neste estado de coisas, além de se abaterem cavalos (o que seria de Nietzsche se lhe tocasse viver em Portugal), também se abatem empregos aos milhares todos os dias. Mas, nesse aspeto, há sempre gente inteligente que sabe muito bem aquilo que tem de se fazer.
João Salgueiro, ex-ministro do PSD e membro do Conselho Económico e Social, possivelmente depois de ter lido o capítulo “Do homem superior” (“Assim Falava Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche), resolveu citar Keynes: “Se não sabem o que fazer, ponham metade dos desempregados a abrir buracos e a outra metade a tapá-los. O que interessa é que estejam ocupados.”
Não sabemos é se com o dinheiro que vão receber, esses fazedores e tapadores de buracos, conseguirão amealhar o suficiente para conseguirem chegar à carne de garrano, pois a de vaca para eles está ao preço do caviar para Cavaco Silva. Por isso tememos que, depois dos cavalos, sejam os burros as próximas vítimas. O problema é que em Portugal os asininos de raça, não os de condição, estão em vias de extinção.
Mas voltemos a Nietzsche (“A Ceia”- “Assim Falava Zaratustra”).
“E a propósito: não me tinhas convidado para uma refeição? E repara, todos os que aqui estão tiveram de percorrer um longo caminho. Por certo não vais alimentar-nos com discursos!”
“E já todos vós falastes demasiado do perigo de se morrer congelado, afogado, ou de qualquer outro mal; mas nenhum de entre vós pensou no mal de que, pela parte que me toca, sofro, e que é a fome.”
“Assim falou o Profeta, mas quando os animais de Zaratustra ouviram estas palavras, fugiram apavorados; pois eles bem viam que tudo o que tinham conseguido trazer durante o dia não era suficiente para encher o estômago àquele único profeta.”
“ (…) Assim falava Zaratustra – mas o Rei da direita replicou: “É estranho! Já alguma vez se ouviram palavras tão razoáveis sair da boca de um sábio?”
“E em verdade, o que de mais estranho se pode encontrar num sábio, é ele ser razoável e não um burro.”
“Assim falava o Rei da direita, surpreendido. Mas o burro sublinhou as suas palavras com um I-han! descontente.”
Pelos vistos, com o caminho que isto leva, só nos resta juntarmo-nos ao burro do Zaratustra e
fazer: I-han! I-han! I-han! I-han!
Nesta época de vacas anoréxicas, está um tempo para cavalos gordos, economistas inteligentes e para burros filosóficos, tenham eles a condição que tiverem.