O Homem Sem Memória - 153
153 – A extinção do grupo de teatro deu lugar à criação de mais dois. A esquerda é excelente nestas práticas. A sua capacidade de divisão e de reprodução em grupos, grupinhos e grupelhos foi sempre um dos seus melhores atributos.
O primeiro juntava os esquerdistas e os socialistas. O segundo agregava os militantes e simpatizantes do Partido Comunista, mais os respetivos unitários. Para sermos rigorosos, temos de explicar que o segundo grupo se subdividiu ainda noutros dois, porquanto a sensibilidade mais ligada aos intelectuais era defensora do teatro de vanguarda e uma outra, de cariz mais operário, se inclinava para o tipo de espetáculo de caráter essencialmente popular, logo cómico. No entanto uma coisa ainda os ficou a unir: todos ensaiavam na sala dos “Canários”, só que em dias diferentes. Fugiam uns dos outros como Trotsky de Estaline.
O José conseguiu, vá-se lá saber bem o como e o porquê, pertencer aos três. Estava decidido a unir o que a ideologia desunia com tanta exuberância. Isto apesar de serem todos marxistas.
O grupo esquerdista e socialista convidou um ex-actor do Seiva Trupe, que à época dava aulas em Névoa, para ser o seu diretor e encenador. Por causa dos apelos mais basistas, imitaram a técnica do improviso e puseram-se a rabiscar pequenos textos a partir de músicas do Zeca Afonso, tentando ilustrá-las com movimentos apelativos, numa mistura grossa entre ballet e danças folclóricas, combinando o “Lago dos Cisnes” com o “Malhão”. Era vê-los a esticar muito os braços em direção ao teto, e ao público, fazendo cara sofrida e falando muito em gaivotas, em pescadores, em estivadores, em burguesia, em operários, em exploração do homem pelo homem, em camponeses e na terra a quem a trabalha pois a canalha come palha, como as cavalgaduras.
Os ensaios nem sempre corriam como deviam. Não só porque se começaram a aperceber que a peça não funcionava como era suposto, pois não se conseguia enxergar lá muito bem o seu sentido, o que provocava acesas discussões entre os seus autores (que, é bom que se diga, pois corresponde à verdade, e, como todos bem sabemos, só a verdade é revolucionaria, eram todos), criando um mal-estar que indispunha, sobremaneira, o encenador, mais habituado a trabalhar textos de qualidade, fazendo com que a maior parte dos ensaios fossem orientados à vez pelos líderes das distintas fações existentes. Originando ainda mais barafunda e confusão, pois se um dava uma certa orientação às cenas, às falas, às músicas e à direção de atores, o que se lhe seguia fazia tudo ao contrário, tentando mostrar quem efetivamente detinha o poder.
Como todos mandavam era certo e sabido que ali ninguém obedecia. Muitas vezes, quando o encenador substituto dizia “toca a sair de cena quem não é de cena” ou saíam todos ou não saía nenhum, ou as duas coisas ao mesmo tempo, o que era ainda mais complicado de gerir e, sobretudo, de compreender.
Era extremamente difícil alguém fazer-se obedecer por quem contestava toda e qualquer autoridade pessoal. Nas poucas vezes em que aparecia o encenador titular, a maioria dos atores e figurantes tentava agir de forma a que o espetáculo ganhasse certa dinâmica e ainda algum sentido, mas a verdade é que o diretor passava quase todo o tempo a reunir com os atores principais, escolhidos exclusivamente por si, e que obedeciam a um princípio: todos gostavam muito de fumar umas ganzas. E era isso que faziam enquanto os restantes se exercitavam nos gargarejos, na colocação da voz, no ensaio de vários passos de dança e na memorização de várias falas. E andaram naquele teatro de enganos durante dois ou três meses sem que a peça adquirisse qualquer aspeto coerente. Foi portanto com um misto de espanto e incredulidade que ouviram o encenador, e diretor, anunciar que, apesar de não parecer, a peça estava pronta para ser apresentada ao público e com esse propósito indicou uma data que, curiosamente, coincidia com a primeira semana de férias grandes da estudantada.
Foi marcado o dia da estreia. Foram vendidos os bilhetes. Foram elaborados e afixados os cartazes. No dia da estreia apenas apareceram os atores secundários e o público, pois ao encenador nunca mais lhe puseram a vista em cima e os atores principais foram passar o fim de semana a Lisboa onde assistiram a um concerto de reggae.
O José nem teve tempo para se desiludir, pois, como informámos anteriormente os estimados leitores, o nosso herói fazia parte de mais dois grupos que naquele momento ensaiavam duas peças de teatro. Uma de um autor português militante do Partido ainda sem nome na praça e a outra de um autor clássico francês muito conhecido, mas de quem agora não lembramos o nome.
A primeira consistia num texto pretensamente moderno onde se tentava desmistificar o teatro como espetáculo, brincando com os estereótipos de classe. O José fazia de ator principal e ao mesmo tempo de falso encenador, muito intelectual, muito revolucionário, muito dado à causa da verdade e da revolução, todo entregue à arte e à sua glorificação. E punha máscaras e tirava máscaras e contracenava com uma diva que o tentava tirar dos espetáculos revolucionários dizendo-lhe que ele era um génio das artes cénicas e que se andava a perder no meio da populaça e do teatro dos maltrapilhos e dos famintos. Mas ele, metido dentro do seu papel, contrapunha que a arte só é arte se for revolucionária, por isso detestava a frivolidade e que o seu dom só tinha sentido se fosse orientado para servir o povo, para denunciar o mal e defender o bem. Mas temos que ser sinceros e comunicar que, apesar do texto ser vigoroso, ao José as palavras saiam-lhe sem chama nem viço. E isto porque a pretensa diva era uma rapariga desengraçada, sem voz para o teatro, com um corpo de lutadora de luta livre, com uns ombros vigorosos, com uma anca reduzida, que, apesar de bem vestida, parecia um manequim de feira, gesticulando fora de tempo, tentando seduzi-lo com a mesma sensualidade de uma senhora de oitenta anos. E como se tudo isso fosse pouco, a donzela rechonchuda estava apaixonada por ele, quase até à náusea. Perseguia-o dia e noite, mandava-lhe bilhetes, escrevia-lhe cartas, fazia-se encontrada em todas os cantos e esquinas. Um dia conseguiu levá-lo mesmo até sua casa e, numa manobra de sedução, despiu-se atrás de um biombo, vestiu um robe e puxou-o para a cama. Ele resistiu, tarde, mas resistiu. Ela deitou-se ao seu lado, por baixo e por cima dele, beijou-o, abraçou-o, acariciou-o, lambeu-o como se fosse um chupa-chupa, disse-lhe palavras doces, recitou-lhe poemas eróticos, fez trinta por uma linha, mas o José parecia que tinha sido mergulhado nas águas do Tâmega em dia de geada, por isso não conseguiu reagir. Mas nem mesmo assim a rapariga desistiu do seu amor e do seu Romeu. Já de pé, porque deitados estavam sentenciados ao adormecimento, abraçou-o pela cintura e pôs-se a falar com ele e a dizer que o desculpava pela sua fraqueza, que ainda o amava mais, se isso fosse possível, por ter demonstrado que não é o amor físico o que o atrai e que mais isto e mais aquilo. Mesmo não querendo ser indelicado, o José bem porfiou nas suas tentativas de se libertar do abraço da ursa apaixonada, mas é o libertas. Deu para perceber que a donzela dos ombros largos podia não ser lá muito prendada, mas era mulher para o agarrar com muita resolução e crença. Já ia alta a noite quando o José utilizou o último recurso, dizendo que logo pela manhã tinha um teste de filosofia no Liceu e que tinha de fazer uma direta para estudar, pois a prova era decisória. À falta de melhor fundamento socorreu-se dos versos de uma canção brasileira então muito em voga. E com a sua cara de verdadeiro ator recitou: “Além disso a minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.” Sensibilizada com este último argumento, resolveu libertá-lo mas com a promessa de que lhe desse um tempinho para se vestir e poder acompanhá-lo a casa.
Se esta cena de amor foi deplorável, por todas as razões e mais algumas, então a da apresentação da peça nem é bom falar. A verdade é que o edifício dos “Canários” desabou perto das três da manhã, apenas cerca de vinte e cinco minutos depois de os elementos do grupo de teatro o terem abandonado após o último ensaio antes da estreia. Com a companhia salva quase por milagre, resolveu-se transferir o espetáculo para o Cineteatro da cidade. Mas existia um problema. Como a sala era enorme tornava-se extremamente difícil os atores fazerem-se ouvir sem a devida ampliação da voz através de microfones. Depois de várias e distintas experiências, chegou-se à conclusão que para serem audíveis os diálogos das diversas personagens, tinha de se semear o palco com microfones emprestados por um grupo de música rock e limitar as deslocações dos atores ao mínimo indispensável. Conclusão: todos ficaram nos seus postos a debitar o texto sem quase se mexerem. O José passou sensivelmente todo o espetáculo ao lado da atlética Julieta escutando-lhe a sua voz desengraçada ampliada pela aparelhagem. Apenas o público se portou como devia, no fim não bateu palmas, mas também não arriou porrada em ninguém por causa de tão mau desempenho.
Depois de mais um fracasso, ao José apenas lhe restou levar a sua cruz até ao calvário. Do mal o menos, na terceira peça unicamente executou a tarefa de sonoplasta.
Durante um mês, auxiliados e transportados por um camarada camponês que possuía uma carrinha de caixa aberta, calcorrearam o concelho, apresentando com assinalável êxito uma farsa gaulesa que muito fez rir o povo das aldeias, pois nisso é como as crianças, as piadas mais brejeiras e alarves são as mais bem aceites. Ai povo, povo que lavas no rio e talhas com teu machado as tábuas do caixão do senhor que escreveu a letra da citada cançoneta, a quanto obrigas. Que seja tudo pela altura do incenso.