O Poema Infinito (156): iluminações
O dia começa a agasalhar as pedras, o musgo e os bichos. Fico imóvel na minha sombra. A casa começa a tremer de frio. Então invento o inverno. No mar, os barcos navegam aos sobressaltos. O silêncio percorre os corredores. As plantas constroem a terra. A minha avó debruça-se sobre a mesa e tenta dormir. As aranhas escrevem poemas de teias nas pedras das paredes. As palavras tornam-se agressivas. Na minha memória acendem-se imagens. Nos meus olhos acende-se o tempo. Todos os sorrisos são desconhecidos. Lá fora um par de namorados cintila procurando o lado quente do sol. Dentro de casa, os objetos brilham. Agora é possível percorrer novamente o caminho da adolescência, registar-lhe os gestos, vigiar o movimento perpétuo dos dias, reparar nas mãos que amam a pele e os sexos, atravessar a noite, alinhar as ruas, sentir a desolação do mar, perceber a amargura dos brinquedos, permanecer imutável como as asas das borboletas, deitar a cabeça em cima das fotografias que enlouquecem no seu instante inalterável, despertar dentro do corpo de quem se ama, passear no sítio onde o tempo se gasta, ouvir os lugares e os murmúrios das coisas, escutar os ruídos interiores das músicas. Tudo volta à sua arrumação agitada. Eu irrompo dentro da minha insónia. A água curva-se quando mergulho as minhas mãos na bacia. Procuro desesperadamente o teu sorriso e o seu brilho lamentativo. Pronuncio palavras violentas que são como gemidos vazios. Ainda nem saí de casa e já volto a ela de novo. A repetição dos dias deixa-me vazio. Escrevo a tua ausência dentro da minha ausência. Procuro-te dentro dos poemas como se a noite já viesse aí arrastando a sua força negra. Escrevo o teu nome na lista de todos os nomes. Aproximo-me do teu corpo passeando os dedos pelo desejo. O teu rosto levanta-se vagarosamente e estende-se no seu sorriso de noite mágica. Tudo é ainda novo. Reconheço os meus próprios erros e o uso violento do desespero. A cama parece feita de cristais líquidos, onde os corpos escorregam. Tenho a adolescência na boca. A memória ficou imobilizada junto ao mar. O mar entra pela janela. Inicio o ciclo dos relatos simples onde as embarcações perdidas entram no eco do tempo. Abro as mãos aos pássaros. Alice espera ainda do outro lado do espelho. O seu corpo tornou-se etéreo. Alice entrou definitivamente no secreto desejo onanista. As histórias e as lendas tornaram-se enigmáticas. Navegamos sobre águas oxidadas agarrados às espadas da insónia. Os homens afogam-se dentro dos seus próprios barcos, têm saudade de tudo e lamentam-se. O cio torna-se noturno, como a fome. E as vozes avançam. Navegamos na memória das tempestades, cansados dos portos e dos corpos e da distância dos lugares. Voltamos a partir para evitar o silêncio da morte e os estilhaços do desespero. Somente a memória sangra. O quarto transforma-se na sua própria insónia. Os sonhos navegam agora em terra, no seu pranto antigo, embebedando-se de saudade. Penso que acordo porque sonho que cheguei sem ter chegado. As colinas inclinam-se, o mar agita-se, o barco baloiça dentro da sua melancolia. Os deuses das pequenas coisas dançam agitando os seus corpos suados em redor do fogo. A nau onde navego está hipnotizada. O meu sexo voa de encontro ao teu. O cais ilumina-se. Os nossos corpos tornam-se fugidios. Os nossos beijos são agora obscenos. Existe sempre uma vontade de partir e uma urgência em chegar. As marés arremessam contra a cama onde nos agitamos. A alucinação do amor é um embriagante perfume. Somos duas ilhas sossegadas onde o amor é um movimento luminoso.