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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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26
Jul13

O Homem Sem Memória - 169

João Madureira


169 – Quando estamos presos, alguns momentos que vivemos entre grades são particularmente trágicos. E o mais trágico de todos é quando recebemos a visita da mulher que nos trouxe ao mundo. Aquilo não é muito bonito de se ver e não é nada, mesmo nada, fácil de viver. Uma mãe banhada em lágrimas a olhar para nós como se estivéssemos prestes a morrer, é desolador. E a cena torna-se ainda mais dramática quando nela entra a Dona Rosa.


Mal a colocaram frente ao seu filho preferido tratou logo de desmaiar. E todos nós sabemos como a Dona Rosa é poderosa no momento do desfalecimento. Desmaiou devagar, mas com um estilo muito próximo do teatro da mais alta qualidade. Se William, o Shakespeare, tivesse mesmo existido, e fosse contemporâneo da Dona Rosa, temos a certeza absoluta de que não se atreveria a morrer sem antes escrever uma peça pensando única e exclusivamente no desempenho dramático de uma atriz com o génio, o talento e o carisma da mãe do José.


Todos os que assistiram à cena ficaram espantados, menos o nosso terno herói que já sabia dos dotes dramáticos de sua mãe. Todos quantos puderam, correram a tentar amparar a pobre senhora em grandioso pranto e estudado desalinho. Os mais sensíveis condescenderam mesmo em deixar correr espontaneamente uma lágrima mais atrevida e afetuosa. O José, temos de reconhecer, mesmo comovido quase até às lágrimas, segurou-as com muito empenho e audácia. Os reacionários não podiam ter o prazer de o ver chorar. Um revolucionário não chora, mesmo que se encontre em processo de dissidência. E desesperar jamais.


Devido a esse facto, muitos dos guardas prisionais acharam-no insensível, o que não acrescentou nada ao conhecimento deles sobre os comunistas, pois todos os reacionários lhes reconhecem a frieza e o desprezo pelos sentimentos próprios, e alheios, como uma das suas principais características.


Quando se recompôs, a Dona Rosa começou logo a ralhar ao filho como se ele fosse um rapazinho da escola primária. O José ficou ainda mais frágil e triste. E lembrou-lhe que ela bem o tinha avisado de que as más companhias o haviam de conduzir à desgraça. Os comunistas não dão nada a ninguém, nem sequer bons conselhos. Pelo contrário, tiram tudo a uma pessoa: a vontade, a educação, a fé e a alma. São uns danados.


O José perguntou-lhe pelos irmãos e pelo pai. Ela informou-o de que o pai não a quis acompanhar com o pretexto de que estava de serviço, mas ela sabia bem o porquê de desculpa tão esfarrapada. Ela bem sabia que o guarda Ferreira a achava choramingona e espalhafateira. Além disso, pensava a mãe do José com alguma propriedade, tinha vergonha de ser militar da GNR e ter um filho preso por motivos políticos. Confessou, no entanto, que ainda se estava a habituar à ideia, mas mandou-lhe cumprimentos e cigarros e algum dinheiro para despesas correntes.


A Dona Rosa: “Com um pai destes, tinhas de sair herege. E logo tu que foste bafejado pelo Espírito Santo, que te pôs a falar na minha barriga. Não soubeste aproveitar o dom, agora estás para aí na companhia do Demónio e desses seus filhos.”


“Mas, mãe, o Graça é bom rapaz, um bom camarada…” “Não te iludas, meu filho. Foi o Graça quem te trouxe para esta desgraça. Foi ele quem te meteu essas más ideias na cabeça. Foi ele quem te enfiou na cadeia.” “Por favor, mãe, não digas isso, porque não é verdade. Eu sou um homem livre…” “Livre? Mas estás preso!” “Sou livre no pensamento que é como o vento que podem prendê-lo, matá-lo não…” “Tu és mesmo parvo. Sempre com as tuas toleimas, com essas rezas mentirosas, com esses falares enganadores.” “Não são rezas mãe, é poesia. Há lá coisa mais bonita do que a poesia!” “Há sim senhor, as orações a Nosso Senhor…” “Pois!” “Não existe por aqui um padre?” “Claro que sim.” “Então confessa-te e volta ao caminho de Deus. Por favor José, desta vez faz a vontade à tua mãe que te quer mais do que a qualquer outra coisa no mundo.” E começou a chorar copiosamente.


Ao José, mesmo contra sua vontade, também os olhos se lhe marejaram de lágrimas pequeninas, mas sensíveis. Ficaram os dois em silêncio. O José não podia contar à sua mãe que, à sua maneira, estava a seguir os seus conselhos, estava a cortar as amarras que o ligavam ao Partido e aos seus antigos camaradas.


Todas as suas decisões foram tomadas individualmente e para isso apenas tinha consultado a sua consciência. Desta vez também não podia ser diferente. Apenas ele e a sua consciência são os donos do seu destino. E seja o que Deus quiser. Bem, Deus não, ou talvez sim, ou… Quem não tem dúvidas não pensa. Só os grandes sábios e os maiores idiotas é que nunca mudam de opinião.


“E os meus irmãos?” “Estão lá fora. Não os deixaram entrar. Mas mandam-te cumprimentos. Dizem que têm saudades tuas e que te querem seguir os passos. Vês, José, os teus irmãos querem seguir-te os passos. Querem dizer coisas tolas, fazer coisas parvas e vir parar à prisão. É esse o ensinamento que lhes envias. És um mau exemplo.” “Por favor, mãe. Eu não fiz nada de mal. Limitei-me a defender as minhas ideias e o meu povo…” “Com armas! Se todos quantos defendem as suas ideias e o seu povo pegassem em armas, não restava uma única pessoa viva no planeta.” “Mas os reacionários apesar de defenderem as suas ideias, não defendem o povo.” “Ai não que não defendem. Tu convences-te de cada coisa. Só vós, comunistas rancorosos e vingativos, é que sois os salvadores do povo? Deixa-me rir. O povo não vos presta nenhuma atenção, nem vos respeita. Rejeita-vos. Detesta-vos.” “Isso é porque as pessoas são ignorantes.” “Tu é que és ignorante. Tu é que não percebes o povo que dizes defender. Tu e os teus camaradas prometeis-lhes o paraíso na Terra. Mas o pobre povo, quando a esmola é grande, desconfia. E com razão. Todos lhe mentem.” “Eu não.” “Tu és igual aos outros. Andas com eles, iludes-te com eles, mentes como eles.” “A revolução liberta os povos.” “Vês. És um mentiroso compulsivo…” “Compulsivo? Quem te ensinou essa palavra?” “É a palavra de Deus…” “De Deus…” “De certa forma sim, pois é a que mais utiliza o senhor padre quando fala da mentira, dos comunistas e do Demónio, que, na sua visão, constituem a Trindade Demoníaca.” “E tu sabes o seu significado?” “O senhor padre diz que quando o Diabo vos transforma em comunistas não sois capazes de conter a tendência para a mentira, pois mesmo pensando que estais a dizer a verdade, não conseguis resistir a apregoar a mentira. E a vossa mentira é medonha.”


O José ficou novamente calado e a Dona Rosa também. Passado algum tempo, a mãe vira-se para o filho e pede-lhe para rezar com ela. Ele levanta-se de imediato do banco e diz-lhe que se insistir na proposta a visita terminará nesse preciso momento. O silêncio instala-se de novo. A Dona Rosa ajoelha-se então sozinha, virada para o crucifixo da sala, junta as mãos, inclina a cabeça para o chão e reza. Os guardas prisionais fazem o mesmo, mas de pé. O José deixa-se ficar sentado a olhar para os pés.


Após a oração, a Dona Rosa senta-se de novo na cadeira, enxuga as lágrimas com o lenço e entrega ao filho as iguarias que lhe trouxe, avisando-o: “Não as desperdices com os teus camaradas e amigos.” Ele respondeu-lhe com a verdade, que também era um enigma para a sua mãe: “Os meus camaradas não são os meus amigos e os meus amigos não são meus camaradas.”


A Dona Rosa, surpreendida com a deixa, questionou-o: “Zangaste-te com os teus camaradas?” “Prefiro não responder.” “É uma boa notícia. Então já não tens amigos…” “Amigos tenho, mas não são os meus camaradas. São os outros.” “Quais outros? Os outros que não são comunistas são ladrões e assassinos. Não me digas que…” “Mãe, em Lucas 23:32-43 é contada a história de Jesus e dois ladrões na cruz. Um desses ladrões demonstrou uma atitude reta para com Jesus e pediu-lhe uma bênção futura. “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso” foi a resposta que Jesus lhe deu. Para as pessoas, este é o parágrafo mais consolador da Bíblia.”


“Deus te abençoe, meu filho, voltaste ao caminho da fé e da esperança. Apesar disso, não faças muita confiança nos teus novos amigos. Come, reza e descansa. E afasta-te dos teus antigos camaradas.” “Assim farei mãe. E agradece os cigarros ao pai. E que Deus te abençoe e a mim não me desampare.” E riu-se. A Dona Rosa fez o mesmo.


O guarda prisional disse-lhes que a visita tinha terminado. 

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