O Homem Sem Memória - 172
172 – Andava o José atarefado a organizar e a catequizar as suas tropas quando o inesperado aconteceu. O seu nome fazia parte de uma lista de troca de prisioneiros entre a República Democrática do Norte e República Popular do Sul. Ele nem queria acreditar. Logo agora que andava no seu processo profundo de dissidência política e ideológica é que tinha de ser novamente confrontado com toda a canga comunista marxista-leninista. Isso até era o menos, pois palavras leva-as o vento. Mas ter de aturar de novo todos os seus antigos camaradas é que lhe provocava fastio. Se fosse apenas o Graça, ainda vá que não vá, agora suportar o funcionário e toda a sua idiossincrasia idiota punha-o à beira de um ataque de nervos.
A sua primeira reação foi recusar a oferta. No que foi apoiado pelos seus novos acólitos e até, vamos lá saber porquê, pelos seus ex-camaradas. Mas as ordens eram explícitas, todos os prisioneiros políticos guerrilheiros comunistas tinham de ser postos do outro lado da fronteira. Todos sem exceção. Ele ainda ripostou lembrando que já não fazia parte do grupo. Mas as autoridades lembraram-lhe que uma vez comunista, comunista para sempre. O José contestou essa pretensa verdade com todo o fervor de que foi capaz de se socorrer. Mas a resposta desconcertou-o. A sua capacidade de organização, o seu talento para a persuasão, a sua habilidade para a liderança, a sua lealdade às ideias e, sobretudo, o seu permanente desafio às autoridades e o seu inesgotável poder de contestação às instituições e ao poder constituído eram disso a prova mais evidente e insofismável de que era comunista. Ele disse “olhe que não”, parafraseando o seu ex-líder Alberto Punhal, e de seguida contestou o argumento falacioso lembrando que os antigos, e genuínos cristãos, de que eram exemplo paradigmático, assintomático e problemático, Jesus Cristo e os seus apóstolos, os islamitas e os anarquistas eram gente da mesma fibra e de idêntico feitio. As autoridades, ou alguém por elas, lembraram-lhe que a prova provada de que continuava revolucionário era esta sua permanente inquietação e inconformismo. Ele lembrou-lhes que tal não era verdade, pois os comunistas eram gente do mais conformista que existe à face da terra, que se limitava a ler e a acreditar numa só ideologia e numa só verdade. Os dignos representantes da autoridade reacionária contrapuseram que pouco percebiam de política, que se limitavam a ter bom senso e a cumprir as ordens que vinham de cima, ou seja, atuar de acordo com a lei vigente e democraticamente estabelecida, pois quem manda, manda bem. Ele riu-se. Eles também. Ele tornou a rir-se. Eles, para não se ficarem atrás, riram-se de novo. O José ainda gargalhou uma terceira vez. Mas as autoridades, sentindo-se postas em causa, carregaram-no de bofetadas. Calaram-no, mas à força, porque apenas com o poder da argumentação era pura e simplesmente impossível. Todos o sabiam, o José, os pais do José, os amigos do José, os camaradas do José e, vá-se lá saber porquê, até os inimigos do José.
Mas a contestação deu alguns frutos. As autoridades condescenderam em ir falar com os prisioneiros camaradas do José para tentarem perceber a situação entretanto criada. Mas eles, como bons comunistas, recusaram-se a discutir uma questão interna do Partido fora dos órgãos próprios e, especialmente, com os representantes das forças reacionárias e opressivas do seu povo.
Depois de algumas lambadas bem dadas, e distribuídas equitativamente por todos, não fossem eles argumentar de que foram injustamente discriminados pelas autoridades, como muito bem lembrou um seu elemento mais esclarecido, transigiram em convencer o camarada funcionário a ir às boas. Afinal tratava-se apenas de permutar umas simples e discretas palavras sobre uma hipotética troca de prisoneiros políticos. Aqui ninguém cedia. Era ela por ela.
O funcionário, mesmo com a cara vermelha como um pimento, e já com um olho inchado, teimava na sua, de que não podia ir contra a disciplina partidária. Mas por fim lá se resolveu a participar no diálogo pacífico e construtivo entre as partes. Afinal, se a URSS aceitava a coexistência pacífica entre os diversos sistemas políticos mundiais, por que razão ele não podia seguir a mesma orientação?
As autoridades, ou o seu representante mais graduado, ainda não apurámos ao certo, quiseram apurar a razão por que o camarada, salvo seja, José, se recusava terminantemente a fazer parte da lista de troca de prisioneiros entre o Norte e o Sul.
Eles, os camaradas, ou ele, o camarada funcionário, ainda não sabemos ao certo, responderam que era um problema de disciplina interna de que não podia, ou não devia, falar.
Ele, o representante mais graduado, está claro, ou elas, as autoridades, como é correto dizer-se se tal corresponder à verdade, coisa que até ao momento ainda não conseguimos tirar a limpo, insistiram na pergunta.
Ele, o camarada funcionário, ou eles, os restantes camaradas da célula guerrilheira, ainda não conseguimos dizer de fonte segura, insistiram na resposta.
As autoridades, ou o seu representante mais classificado, ainda não sabemos ao certo, insistiram mais uma vez na pergunta.
Eles, os camaradas, ou ele, o camarada funcionário, ainda não apurámos devidamente, responderam da mesma forma e feitio, que era tudo uma questão interna. Que os problemas de família se discutem dentro da família.
Ele, o representante mais graduado, ou elas, as autoridades, coisa que até ao momento ainda não conseguimos tirar a limpo, pegaram no argumento incluído na resposta e disseram que estavam de acordo. Mas lembraram-lhe, ou “lhes”, como é mais avisado escrever, para não fugirmos ao rigor, como é nosso apanágio, que é também em família que se aplicam os tratamentos corretivos. Vai daí encheram-no, ou “nos”, como é avisado escrevermos pelas razões já invocadas, de estalos, bofetadas, lambadas e chapadas e ainda dos seus derivados: lapadas, bofetões e tapa-olhos.
Mas como a coisa não desempatava, pois os comunistas são extremamente teimosos e disciplinados, e porque fazia parte do acordo entregar a mercadoria para troca em bom estado de conservação, o representante da autoridade, disso temos a certeza absoluta, mandou que os comunistas fossem respeitados nos seus princípios. Se não queriam falar, isso era um problema que só a eles dizia respeito. E deu ordens expressas para que fossem prestados cuidados médicos aos que necessitavam e administrados banhos de imersão e massagens tonificadoras a todos, sem exceção.
Depois de bem banhados e melhor massajados, os prisioneiros foram postos numa carrinha e transportados até às margens do Mondego. Ao José ninguém lhe deu palavra. Apenas o Graça condescendeu nos bons dias, mas em segredo.
O sol brilhava. Do outro lado esperava-os o socialismo real e a autêntica liberdade.