O Poema Infinito (165): a caligrafia moral do esquecimento
Todo o lugar exige regresso e um olhar demorado. Somos de uma geração agressiva. Aprendemos a ler com palavras de fundo cinzento enquanto ouvíamos a chuva a cair sobre os tetos de zinco. Os nossos avós bebiam aguardente enquanto a noite se aproximava invadida pelos enigmas. Nesse tempo o horizonte era branco e as aves abrigavam-se debaixo das folhas junto aos rios. Aprendíamos palavras que se tingiam de cores imprecisas. Observávamos a mudança do tempo e perseguíamos obsessivamente o silêncio da tristeza. As árvores erguiam-se até ao céu acompanhadas pela nossa imaginação. Ordenávamos todas as possibilidades dos versos e repetíamos rimas em voz alta juntando as vozes à procura de uniformidade. As ondas entravam-nos pelas janelas e flutuavam procurando as arestas breves dos nossos olhares. As possibilidades dos poemas multiplicavam-se pela distância das montanhas. Nessa altura a natureza entrava em contacto com a arte. A filosofia era designada pela imaginação. Afastávamos as superstições com o olhar enquanto a chuva assolava as montanhas e enquanto as memórias incendiavam os anos. Tudo permanecia inquieto. Toda a nossa ironia estava ainda obscurecida. Por isso falávamos da leitura de romances e da compreensão lenta da razão. Recusávamos a vontade dos sentidos. Criávamos distância, invocávamos o esquecimento e encolhíamos o inverno dentro dos nossos cadernos escolares. Os nossos rostos começaram a adquirir tranquilidade. Arrumávamos as obras marcando-as com a nossa harmonia. Estranhávamos o volume dos nossos corpos e os seus movimentos reflexivos. Conservávamos a tradição dentro do seu sentido sombrio e recusávamos a sua regulação regressiva. Só mais tarde prometemos ceder às solicitações do talento. As horas eram mais fluídas do que agora. Os textos eram verticais e reagiam continuamente às influências espectrais. Preenchíamos o espaço das almas com regras arbitrárias. O amor era uma intuição poética com ângulos de pureza. As imagens reproduziam a lírica funesta dos espelhos. Brincávamos à procura de uma identidade falsa, como se ela fosse uma curiosidade explicativa da poesia. Agora sabemos que cada poema tem a sua própria fórmula esclarecedora construída por sensações de desequilíbrio. Como se o poema criasse o seu próprio poeta. Habituámo-nos à ausência, ao seu tédio, à sua indiferença implacável. Era no outono que criávamos as almas, a vegetação dos bosques que orlavam as casas, as aves que pontuavam o céu, os poemas indecisos, a nostalgia das cidades. Era também no outono que invocávamos os regressos, os percursos espirituais, as vozes das mulheres que abriam os poemas, as pontes abstratas de tanta água verem passar, o equilíbrio frio do sofrimento, a mística escrita dos crepúsculos, a pontuação visionária dos astros, a trágica cor dos dogmas, a estética incompreensível do abandono, a embriaguez dramática dos olhares, as translações vegetais, a mecânica antiga do sangue. As aves voavam loucas na direção do inverno. Nós centrávamo-nos na magnificência das verdadeiras profecias, no triunfo da fecundidade, na poesia alcoólica do amor e da morte. A intimidade era uma possibilidade dramática, uma longínqua engenharia de manipulações aparentes. Os anos passaram. O tempo ficou solitário. Os nossos lábios fecharam-se para tentarem corrigir a transcendência da vida. Agora estamos mais disponíveis para o sofrimento, para a intimidade do mundo, para a solidez fixa da dúvida. Agora escrevemos o tempo com a caligrafia moral do esquecimento.