Pérolas e diamantes (57): a escrita e a sede
Já várias vezes me perguntaram porque escrevo livros sem garantia de publicação. Eu sorrio e fico calado por que nem eu sei bem a razão. Mas partilho da ideia de Gabriel García Márquez de que escrever livros é quase uma atividade suicida.
Na opinião do autor de “Cem Anos de Solidão” nenhuma outra exige tanto tempo, tanto trabalho, tanta dedicação comparativamente aos benefícios imediatos.
Escreveu ele: “Não acredito que, ao chegarem ao fim de um livro, muitos leitores se questionem sobre quantas horas de angústia e calamidades domésticas custaram aquelas duzentas páginas ao autor ou quanto recebeu pelo seu trabalho […]. Depois desta sombria estimativa de infortúnios é elementar perguntar porque é que nós, escritores, escrevemos. Inevitavelmente, a resposta é tão melodramática como sincera. É-se escritor, simplesmente, como se é judeu ou negro. O sucesso é encorajador, o favor dos nossos leitores é estimulante, mas não passam de meros ganhos adicionais porque um bom escritor continuará a escrever aconteça o que acontecer, mesmo que os seus sapatos precisem de ser remendados e mesmo que os seus livros não vendam.”
Mas para tristeza nossa, os portugueses estão muito mais interessados no campeonato nacional de futebol do que com o que está a acontecer ao país. E eu até os compreendo. Enquanto tudo à nossa volta se desmorona, mais vale morrer anestesiado do que cheio de dores.
Os nossos políticos andam agora sobretudo entretidos com as informações sobre a altura do primeiro-ministro francês ou sobre o tamanho dos sapatos da senhora Merkel. Apesar de virem para as televisões afirmar que andam especialmente preocupados com a crise.
Entretanto, os escritores consagrados relacionam-se não apenas com a compaixão e a caridade, mas, sobretudo com o poder. E, pegando nas suas próprias palavras, igualmente com a responsabilidade, a solidariedade, o empenho e, porque não dizê-lo com toda a clareza, com o amor.
Eu a ter que me definir em termos políticos e sociais direi que defendo o sentido da solidariedade, que é o mesmo que a minha avó chamava de Comunhão dos Santos. Isso significa que cada um dos nossos atos nos torna corresponsáveis por toda a humanidade. Ninguém vive sozinho. Todos somos responsáveis por todos. Acho que quando uma pessoa descobre isto é porque atingiu o ponto mais elevado da sua consciência política.
Portugal continua a ser um país com uma consciência política reduzida. E ainda vai ficar pior porque os portugueses já não acreditam em nada, a não ser na Nossa Senhora de Fátima. De facto, se a religião nunca nos levou a lado nenhum, a política ainda tornou isto pior. Por isso, é que existe disseminada no tecido social português a atitude do salve-se quem puder e cada um por si. Este é o presságio para a destruição social completa.
O pior é que nem o Governo, nem a Assembleia, nem o presidente da República, nem os partidos maioritários se deram conta do descalabro. Todos pressentimos que o abismo está apenas a um passo.
Mas a vida segue para uns e termina para outros. No livro “A Casa das Belas Adormecidas”, Yasunari Kawabata escreveu: “Os velhos têm a morte e os jovens têm o amor, e a morte só vem uma vez e o amor muitas vezes.”
E o escritor continua a escrever porque, como exprimiu García Márquez, “a vida não é o que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la”.
E é também com as palavras de Gabo, ditas numa entrevista a Juan Gossaín em 1971, que termino por hoje: “Sabes, meu velho amigo, a sede de poder é o resultado de uma incapacidade de amar.”