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Imaginei alguém a cair no colo do bem e acontece que caiu no ventre do mal. Envolto em eurolínguas e calçado com as palavras irritantes da lusofonia. Ninguém é virtuoso no vício. As nossas vidas são agora dirigidas por caóticos algoritmos. Pela densa sombra do amor. Sonhos sem cor. Sem gozo. Sem repetição. Sem sim. Nem não. O Anjo Gabriel já deixou de representar o seu papel de salvador do mundo. O céu é cada vez mais uma coisa vaga. Inerte. Sujeito a gestos pontuais. Ver as coisas tão de perto ainda nos faz mais mal. Beijos a preto e branco são como comida sem sal. Nem fazem bem nem fazem mal. Nem outra coisa que tal al al al. Eco. Amo-te em eco. Em seco. Em desvantagem. Uma declaração de amor exige sempre uma voz impregnada de dor. Eco. Amo-te te te te. É difícil encontrar a nossa alma gémea emocional. Nasci num tempo de lobisomens disfarçados de tudo e mais alguma coisa, onde as meninas eram protegidas, os bonecos chiavam e eu não conseguia engolir a colher com óleo de fígado de bacalhau. Naquele tempo, cortavam-se as unhas rentes para não nos arranharmos. Tapavam-se os ouvidos com bolas de algodão para os proteger do frio. Ouvíamos o mar lá de longe, pondo búzios junto às orelhas. Tudo tinha um sabor amargo. Até o ar. Mesmo os contos de fadas eram amargos, as Belas Adormecidas acordavam de noite com o frio, as meias de lã faziam-nos cócegas nos pés e, no verão, a minha mãe não me deixava ir para ao pé do rio com medo que me afogasse. Mas deixava-me chapinhar nos regos de água quando ia com a avó regar o milho. Vivíamos cheios de costume. De costumes. De rezas. E esconjuros. Terços, pecados, confissões, porrada e bênçãos. Catequese. Muita catequese e mãos postas e pessoas ajoelhadas e mais confissões. E essas mesmas pessoas a engolir a hóstia como se ela queimasse na língua. Tudo parecia tão enrugado como a pele da avó. Essa foi a minha fase a preto e branco. Quase tudo cheirava mal. E eu não conseguia engolir a comida porque tinha as amígdalas inchadas. Dávamos beijos uns aos outros como se fôssemos abelhas. Zum zum zum… mal al al al… Eco. Amo-te te te te. E não era por motivos paternais. Uma vez gritei no meio da rua porque o meu primo me partiu os brinquedos todos. Era um brutamontes. Ele comia tudo e eu não comia nada. Mas fui obrigado a aprender que é a comer do que não se gosta que se aprende a descobrir aquilo de que gostamos. As crianças mimadas são assim. Por isso contraem muitas doenças infeciosas. Apanhei tosse convulsa. Comia pão com manteiga, pão com manteiga, pão com manteiga e leite creme quando apanhava anginas. Aprendi à minha custa que uma criança tem de se habituar a tudo, a viver na companhia de malucos, velhos e gatos. E, ainda por cima, preso à perna de uma mesa por um fio de linha que não podia ser quebrado. Ouvia falar muito no prodígio que eram os outros. Os meninos loiros, finos, branquíssimos como o leite de que se alimentavam. Nós éramos escuros e peludos. Eles, os loiros, andavam de bibe colegial e sapatinhos de verniz. Nós, os outros, de calças puídas, camisola grossa, botas rombas e cambadas. Eles afeiçoavam-se à fé, à esperança e à caridade, com os seus bibes branquinhos. E elas, as irmãs deles, meneavam-se com os seus vestidinhos novos, engomados como se fossem anjas. Parecia-nos que as asas lhes começavam a crescer nas costas, ainda antes dos seios. A nós afeiçoavam-nos à fé com açoites de chinelo ou vergastas. Eles riam-se por nos verem chorar de dor e raiva. Ai ai ai… al al al… Eco. Amo-te te te te estejas lá onde estiveres. Tudo dura tão pouco que chega a meter medo. Medo do do do. Eco. Amotracinhote.
Esta sociedade dita democrática é, existencialmente, constituída por personagens apaixonadas pelo arrependimento. Ou melhor, viciadas em reciclar disparates. Em construir estereótipos. Os da direita radical redimem-se num ladrão de malas de aeroporto. E os da esquerda ipso facto violam os princípios políticos e morais que defendem em público para, em privado, despedirem mulheres em período de licença de maternidade. A fachada do moralismo é a hipocrisia. O paradoxal é que os polícias da extrema-direita são, afinal, larápios de pechisbeque. E os defensores dos direitos das trabalhadoras, sobretudo das mulheres grávidas, são uns inverosímeis padrecas. Olhai para o que eu digo, não para aquilo que eu faço. A sua prática baseia-se nos princípios dos seus inimigos. De classe. De classe? Ah, ah, ah! “Esta lei é para os patrões de direita”, dizem eles. “A nós, os outros, os excelsos outros, é-nos permitido contorná-la. Basta enchermos a boca com os sagrados princípios da moral superior.” Afinal, os políticos são todos jesuítas. Mesmo os franciscanos. São todos iguais. Em direitos. Só que uns são mais franciscanos que outros. Venha de lá o Diabo e escolha. Se é capaz. Eu até podia dar uma ajuda. Mas já me vai faltando o rancor. Acreditei que quem propunha as boas ideias era porque acreditava nelas. Sinceramente. Antes destes episódios rocambolescos, soubemos que uma senhora política defensora dos direitos dos animais e da agricultura sustentável e ecológica era sócia de uma empresa que se dedicava a um certo tipo de agricultura intensiva de mirtilos e framboesas. E também soubemos de gente livre e socialista, à mistura com alguns bobos da corte esquerdistas, defensores da excelsa escola pública, que colocam os seus filhos em escolas privadas, onde pagam propinas proibitivas para a quase totalidade dos cidadãos portugueses. E até de um tal Gandra, cirurgião militar, que acumulou funções pagas em cinco hospitais do SNS, como tarefeiro, quando não estava autorizado a fazê-lo por ser diretor regional do Norte do INEM. Enquanto CEO do INEM, substituiu, em sete meses, dos nove que exerceu como diretor executivo do SNS, nove administrações de unidades locais de saúde, tendo afastado uma delas num telefonema que durou apenas dois minutos. No jornal do regime (Expresso) leio a notícia de que a Inspeção-Geral do Ambiente e Ordenamento do Território fiscalizou 59 municípios, tendo descoberto ilegalidades em 94% dos projetos urbanísticos. Entre os municípios com mais ilegalidades verificadas estão Mira (100), Almeirim (81), Ferreira do Zêzere (76), Silves (75) e Chaves (40). Será que Chaves está no Rumo Certo? Tudo o que rufa e toca é tudo a mesma tropa. Todo o efeito político é mimético. O recentíssimo ex-Secretário de Estado, e ex-presidente da Câmara de Bragança, Hernâni Dias, fundou, com a mulher e os filhos, duas empresas imobiliárias, já como membro do atual Governo e momentos antes da aprovação da Lei dos Solos. Lei que foi aprovada pelos de sempre, ou seja, com os votos dos partidos do Governo e com a abstenção do PS. Já o génio da inverosimilhança, António Costa, agora envergando o personagem de presidente do Conselho Europeu – mas ainda com um tal de Vítor Escária, uma PEN e 75 mil euros fechados no cofre da sua consciência –, foi considerado por Wolfgang Münchau, jornalista e autor do livro “Kaput”, como “um peão num jogo maior”. Mas voltemos ao nosso retângulo dourado. Desde o início da legislatura, já foram constituídos arguidos nove deputados (PS, PSD, Chega e IL), ainda sem contarmos com o hilariante Miguel das Malas ou Arruda Sansonite – também antigo agitador e destacado interveniente em campanhas do PS Açores – , que deverá ser o décimo. Na origem do descalabro está a corrupção e as zangas partidárias. A corrupção instalou-se na política e é através dela que põe os seus ovos de serpente na Administração Pública, onde se aprimora e fortalece. Se nada for feito será ela a dar o golpe de misericórdia na nossa democracia. É essencialmente por esta razão que Portugal continua a ser um Estado falhado. Em verdade, em verdade vos digo, que no que diz respeito à corrupção em Portugal, a realidade ultrapassa, de longe, a mais arrojada imaginação. Todos sabemos que é muito difícil fazer dos brutos, anjos. Mas, por favor, não queiram os políticos fazer de nós anjinhos. Ao que dizem, as raposas entraram há pouco tempo, e em força, dentro do galinheiro parlamentar. Mas, ao que todos sabemos, algumas já lá estão instaladas, mesmo que disfarçadas de galos e galinhas garnisés, há muito, muito tempo.
PS – Por causa das subvenções vitalícias, dispara a despesa com as pensões dos políticos. O Orçamento de Estado prevê para este ano gastos de 8,9 milhões de euros, mais 37% do que o valor inicial atribuído. Apesar do valor das pensões dos funcionários públicos serem divulgadas no D.R., a ministra resolveu esconder a lista dos beneficiários políticos.
Ali vem ele, o anjo da guarda, exibindo a sua carinha angélica de criança rosada, imberbe, de lábios delicados, evidenciando a sua beleza e a sua inocência pueril, que a todos sossega. Já atravessou mares, encantou serpentes, foi palhaço, trapezista, empregado de bar, lenhador, guardador de rebanhos, fernando pessoa, ferroviário, ator de teatro de vanguarda, adília lopes, marinheiro, caetano veloso, lenhador, herberto helder, travesti, mário cesariny de vasconcelos, lutador de jiu-jitsu. Tem coração duplo. Dizem. Num dos seus delírios também foi pugilista. E funambulista. Escreveu poesia repleta de murros, dados e levados, sobretudo no rosto, que o faziam parecer jesus cristo depois de expulsar os vendilhões do templo. Pedalando num triciclo, distribui uma revista literária criada por si. Fez vários espetáculos em obscuros cabarés e salas prestigiadas onde, depois de vários números circenses e poemas declamados ao contrário, sacou de uma pistola, dando a entender que se ia suicidar, mas acabando por disparar na direção de um alvo vestido com uma armadura medieval. Disse enormidades sobre a arte. Todas falsas. Todas verdadeiras. Apesar dessas disputas artísticas, declarou não ter paciência para as guerras, afirmando-se ferozmente pacifista. Foi o primeiro modelo de “anartista”, um ser a quem aborrece, acima de tudo, o dinheiro, a glória e o público. Vestiu-se de cowboy, montou um alazão preto e disparou balas verdadeiras sobre a instalação elétrica das salas onde atuava. Vestiu-se de índio, montou um alazão branco, e disparou flechas na direção de um alvo com cara de francisco pizarro gonzález e vestido com armadura medieval da cintura para cima. Este anjo era capaz de matar um homem pela simples pressão de dois dedos e se o chateassem a valer, com um murro deitava um prédio abaixo. Harpo Marx ainda conseguiu amparar um deles para deixar passar uma pata a conduzir meia dúzia de patinhos feios. Harpo era também um bom anjo da guarda. Um dia, perante uma sala cheia de pessoas ávidas de surpresas artísticas, resolveu dirigir-se para a tribuna, olhar em silêncio o público e começar a despir-se. A princípio, quando ainda tirava os sapatos, as meias, despia o casaco e as calças, a plateia parecia aceitar a marcha dos acontecimentos com um suspiro indulgente e mesmo com um sorriso frio de cinismo autoimposto. Mas quando o anjo da guarda ficou em trajes menores e acabou por despir-se totalmente, revelando a mais perfeita das indiferenças, acompanhada pela sua portentosa e angélica nudez, um murmúrio de reprovação inundou a sala. Foi então quando o anjo soltou um grito tão selvagem como se viesse do início da criação. Talvez igual ao que adão lançou quando deus lhe tirou uma costela e dela moldou eva a ferro e fogo. Quando um punhado de homens o rodeou, foi-se a eles a murro. Mas acabou vencido. O restante público abandonou a sala numa debandada tumultuosa. No dia seguinte, resolveu aparecer num baile enfiado num manto, exibindo a sua corpulência e magnetizando, pelo seu histrionismo, os artistas plásticos que o seguiam. Para fugir às guerras calcorreou estradas poeirentas, vagueou por campos verdes, escondeu-se e dormiu em granjas. Morreu num ato falhado de restituir à palavra da poesia o puro furor da vida pulsional e instintiva. Afinal, este anjo da guarda não tinha o seu anjo da guarda.
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