A cultura do meu amigo
Hoje apeteceu-me comer um gelado, enquanto conversava com um meu amigo que é muito dado às coisas da cultura. E falámos muito e falámos bem. De vários temas, todos interessantes. Digo-vos que é muito útil falar com esse meu amigo. Isto é, quando ele nos deixa falar. É que ele sabe muito de muita coisa, sobretudo de alta cultura. Fala muito e bem sobre os mais variados temas. Todos temas muito interessantes, muito abrangentes e muito atuais. Ele é até mais culto do que a maioria dos cultos do nosso país. E olhem que, mesmo sendo Portugal um pequeno país, possui, mesmo não parecendo, muitos e bons homens e mulheres de cultura. Mas, mesmo assim, este meu amigo supera-os quase a todos. Ele fala muito, bem e depressa e nunca, mas mesmo nunca, revela dúvidas enquanto discursa. Ou seja, nunca se engana, nunca se atrapalha, nunca gagueja. O discurso sai-lhe sempre límpido, sem hesitações, sem atrapalhações, sem flutuações, ou outras indeterminações. Com ele é sempre a direito, mesmo quando o seu discurso revela uma configuração um pouco mais sinuosa. Tem este meu amigo a qualidade de tudo descobrir. De pôr tudo claro como água. A sua cultura é muito apreciada pela família, pelos amigos, vizinhos, colegas e até por alguns dos seus inimigos. Mesmo os seus inimigos reconhecem que ele é muito, mas mesmo muito, culto, de uma cultura superior, muito metódico no falar, muito comedido nos seus gestos, que também são cultos, até o seu andar é um andar que reproduz a sua brilhante cultura. O seu andar é mesmo muito erudito. De uma erudição convergente, tranquilizante e tranquilizadora. Mas não é só o seu andar ou o seu falar que espelham cultura, o seu olhar também a exprime. De uma cultura impecavelmente estudada. Se a cultura tem alguma utilidade, de certeza que é neste meu amigo onde encontra a sua plena realização. As suas conversas, mesmo quando parecem fúteis, não o são. O meu amigo dá-lhes sempre um toque culto. Até quando come consegue encher-nos de cultura. Com ele tudo se transfigura em cultura: os gestos, os talheres, os condimentos, as toalhas, os guardanapos, os tachos, os copos, o vinho, até mesmo os palitos dos dentes ganham uma auréola sublime, uma importância inaudita com espaço próprio na história universal. Depois é a sobremesa que se nos agiganta na sua intrínseca utilidade, no seu inseparável conceito culinário, na sua ancestralidade cultural, na sua significância metafísica, no seu indesmentível valor simbólico e prático, na sua génese voluptuosa, no seu redimensionamento monástico, na sua decifração abstrata, ou estrutural, ou alegórica. A tudo lhe encontra sentido, forma, objetivo, importância, sedução, uniformidade, relação e arte. Até na falta de cultura encontra cultura. E beleza. Para ele tudo é belo porque, na sua perspetiva, tudo se reduz à linguagem. No princípio era o verbo, repete ele muitas vezes. É muito esclarecedor em tudo o que diz. Revela-nos a cultura que está por detrás da disposição das cadeiras, na colocação dos candelabros, no ritual de nos sentarmos ou nos levantarmos da mesa. Aponta-nos o conflito civilizacional e a evolução cultural que está por detrás do ato de não cruzarmos cumprimentos de mão. Elucida-nos com muita competência sobre o modernismo sistémico das floreiras numa sala de estar, ou sobre o conflito epistemológico das reações químicas entre pessoas que se querem bem. Uma noite passada com este meu amigo vale por uma semana inteira a estudar a enciclopédia brasileira de cultura. Podia estar aqui toda a noite a escrever que não era capaz de expressar convenientemente a sua cultura. Por isso aqui vos deixo este pequeno introito com a única intenção de prestar, a esse meu amigo, uma singela homenagem que, não sendo culturalmente relevante, é sincera.