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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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29
Jan24

A sexualidade das pequenas coisas

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia.jpg 

O meu amigo M. chegou ao pé de mim, sentou-se, pediu um café e pôs-se a bebê-lo como só ele o sabe fazer. O seu porte é distinto, mesmo a tomar café. Ou melhor, sobretudo a tomar café. O M. toma o café como ninguém. A sua maneira de o pedir ao empregado, a forma distinta como abre o pacote de açúcar, seja ele uma pequena bolsa retangular ou cilíndrica, a maneira como o mexe, em movimentos lentos e exatos, como quem desenha uma circunferência com o auxílio de um compasso Kern, surpreende qualquer um. Já vi pessoas a deterem-se no momento de tomar as suas bicas por se sentirem verdadeiramente impressionadas com a habilidade e o porte eletivo do meu amigo na execução perfeita do ato de tomar café. O meu amigo M. sorve o café como se cada sorvo fosse o último. Ou melhor, toma o seu cimbalino como quem se despede da vida, após ter reconhecido que ela foi inteiramente preenchida com coisas boas. Mas, e para o amigo leitor se inteirar melhor do seu prazer, podemos igualmente acrescentar que o meu amigo M. toma a sua bica como se o fizesse pela primeira vez, como quem se regozija com a primeira namorada, como quem saboreia o primeiro beijo ou como quem se prepara para ter a primeira relação sexual.

Penso que a última parte do primeiro parágrafo foi influenciada pelo meu subconsciente, mas só disso me apercebi quando me pus a escrever o que os queridos e estimados leitores estão agora mesmo a ler. De facto, a primeira relação sexual do meu amigo foi como quem toma o primeiro café e fica desde aquele momento indelevelmente apegado à cafeína para o resto da vida, não conseguindo largar a italiana porque o seu corpo já vive dependente do estímulo do alcalóide do grupo das xantinas.

Mas para chegarmos até aí, primeiro vamos deixar falar um pouco o meu amigo. Naquele dia em que chegou ao pé de mim e mais uma vez tomou a sua italiana com todo a arte e esmero, que são, como já atrás referi, os traços mais fortes da sua personalidade, disse o seguinte: “Caro João, ontem o meu filho chegou a casa com os bolsos cheios de preservativos, como no dia em que pela primeira vez foi à escola e o encheram de rebuçados. Só que desta vez vinha da universidade, da festa de receção aos caloiros. Além de uma pasta, uma bata, blocos de notas, roteiros, um lista telefónica das Páginas Amarelas, um cordão com aloquete, uma proposta de abertura de conta numa instituição bancária, um cartão multibanco provisório e duas esferográficas, ofereceram-lhe vários e distintos preservativos em embalagens criativas, com distintos sabores, com ergonomias curiosas e mesmo um exemplar luminescente destinado à parceira, para, mesmo no escuro, saber sempre o que procurar e onde poder encontrar o membro fálico do mancebo sem ajuda do GPS do telemóvel. Ora, caro amigo, mesmo sabendo eu que a distribuição dos preservativos são uma forma de combater as doenças sexualmente transmissíveis, também são como que um apelo a que essas mesmas relações se efetuem. É um pouco como a história do ovo e da galinha. O meu filho mostrou-se desde logo interessado em utilizar tudo o que lhe tinham oferecido no kit universitário, afirmando que por algum lado se deve começar a vida académica. E que se ela é constituída por sangue, suor e estudo, o melhor é começá-la com as experiências mais aprazíveis. Os psicólogos dizem que ter uma relação sexual no momento da entrada para universidade ajuda a libertar a libido e por isso mesmo é uma forma estimulante de potenciar as relações intergrupais que são indispensáveis para criar os laços de amizade e integração no grupo. Representa o mesmo que no teu tempo”, disse ele para mim, “entrar com o pé direito”. Ao que eu lhe respondi: “Essa curiosa expressão utilizávamo-la como um amuleto, um talismã, um esconjuro. Mas dar preservativos como quem distribui rebuçados de distintos sabores e cores aos jovens parece-me um pouco excessivo. Olha, meu filho, lá diz o povo na sua sabedoria, o que não é visto não é lembrado.” De seguida atendi o telemóvel e a conversa ficou por ali. Mas não deixa de ser irónica a circunstância de lhe oferecerem o objeto que permitiu o equívoco da sua gestação. E calou-se. E calado ficou durante mais meia hora, enquanto fazia que lia o boletim municipal. Depois levantou-se muito direitinho e foi passear para o parque onde se entreteve a decorar “Os Lusíadas”. E ia e vinha recitando as estrofes respeitantes à Ilha dos Amores.

O meu amigo M. foi um jovem adiantado para a época. Na altura em que nos formámos, um preservativo era a modos como a teoria heliocentrista de Galileu no seu tempo, uma convicção contestada por quase todos. Mas, apesar da ignorância e da iliteracia da maioria, especialmente da maioria dos jovens, o meu amigo leu algures que existiam artefactos de látex que permitiam praticar sexo para além da procriação. Evidência que atualmente ainda é negada pelo Vaticano. Não propriamente a evidência, mas antes a realidade da moral cristã, que não é propriamente uma moral mas uma fé moralizante apta a defender a procriação como fator essencial das relações sexuais. Ou seja, como objetivo definitivo. Por isso se fez forte e, numa ida a Lisboa em viagem de estudo, deslocou-se a uma farmácia e pediu um preservativo. Como a farmácia estava a abarrotar com pessoas a solicitar Fósforo-Ferrero para administrar aos estudantes por ser época de exames, nem sequer lhe pediram para mostrar o bilhete de identidade. A partir daí nunca mais deixou de transportar nos bolsos das calças o seu preservativo de estimação. Demorou foi muito a utilizá-lo. Não porque lhe faltasse a ousadia e a vontade. A ala feminina é que não lhe aparava os lances. Fizesse frio ou calor, chovesse ou nevasse, o meu amigo trazia sempre nos bolsos das calças o lenço, as chaves de casa e o preservativo. Apesar da fortaleza do invólucro, a textura começou a dar de si. Ou pelo menos era isso o que nos parecia quando ele, num ato pedagógico, nos mostrava a embalagem azul que supostamente guardava uma embalagem cilíndrica de borracha virgem, tão virgem como a namorada do meu amigo. Ou até ainda mais, se tal é possível. Com o passar do tempo, e com a intensidade dos apelos da carne, um dia, um glorioso dia de primavera, o meu amigo conseguiu alcançar os seus objetivos. Passados nove meses nasceu o seu primeiro filho. Quando o questionámos sobre o facto, limitou-se a confessar que o preservativo lhe tinha saído furado. Naquela altura não havia ainda uma lei a exigir que os produtos exibissem o seu prazo de validade.

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