Anúbis e etc... e tal
Anúbis em casa
Apareceu-me em casa, não sei ainda bem como, Anúbis, o antigo deus egípcio da morte e dos moribundos, por vezes também deus do submundo. Conhecido também como deus do embalsamamento, o guardião das tumbas e juiz dos mortos. Os egípcios acreditavam que no julgamento de um morto era pesado o seu coração e a pena da verdade. Por vezes Osíris, o seu pai, aparece também cá em casa e trocamos opiniões. Noutros dias é a sua mãe, Nephthys, quem faz o mesmo e então estabelecemos uma troca de opiniões muito serena e muito cordata. Ela é uma deusa muito educada, muito curiosa e sábia. Nunca dá uma opinião se não lha pedirem. E mesmo assim pede sempre desculpa. E gosta muito do seu filho a quem não nega rasgados elogios. Já não existem divindades assim. Anúbis já me apresentou a sua filha, Qeb-hwt, também conhecida como Kebechet. Uma rapariga muito gira, muito estudiosa e serena. Também ela gosta de música, de toda a música, menos a clássica, à semelhança do pai. Anúbis aninhou-se junto às colunas da televisão e da aparelhagem de som e dali não quer sair. Ouve com muita atenção a música rock, jazz, pop, hip-hop e até música portuguesa, menos fado que diz que é uma música sempre igual, muito lamechas e pobrezinha. Mal ele sabe que o fado é a imagem fiel do nosso povo. O que não tolera é música clássica. Apenas com uma exceção, gosta muito de Bach. Muito, mas mesmo muito. Também aprecia ouvir o noticiário das nove na SIC Notícias, a cargo do educadíssimo Mário Crespo. Hoje, como ele não apareceu, ficou um pouco inquieto. Facto curioso é que se mantém ali paradinho, com as suas orelhas espetadas e focinho muito aprumado. Nem sequer pisca os olhos. Não se emociona com nada. Um deus é um deus. Nunca mostra os seus sentimentos aos mortais. Eu não lhe levo a mal. Mede cerca de 30 cm, mas isso não o impede de ser imortal. Antes lhe facilita a função. Ontem à noite cantou, para quem o quis ouvir, a canção Nefretite não tinha papeira do Zeca Afonso. Cá em casa, porque somos fãs incondicionais do músico português, ficámos de boca aberta, mas muito satisfeitos. Pedi-lhe então autorização para o fotografar. Ele foi muito prestável. Eu agradeci-lhe e pus-lhe um pouco de Bach na aparelhagem. Ele deu um passo em frente e depois regressou à sua posição inicial. A seguir fui para a cama ler alguma poesia de Herberto Hélder (Poemas do Antigo Egipto), que, segundo me confessou Osíris, é tu cá tu lá com o seu filho.
Cão solitário
Chove. Lá fora chove. E eu vou passear. Passear à chuva é uma tarefa solitária. Como solitário é um coração compassivo. Vou dando voltas e voltas e ouvindo as gotas caírem no chão. Não penso em nada. Só na chuva a cair. As árvores agitam-se com o vento. O vento enerva-se com a chuva. A chuva excita-se com as nuvens. As nuvens escorregam lá no alto. Dirijo-me à quinta de um amigo que vive longe. Vou lá muitas vezes quando chove. Vou lá ver os rododendros e as murtas, os eucaliptos e os pinheiros mansos, os carvalhos e os castanheiros. Sento-me numa fraga redonda e alta e oiço os pássaros cantar no meio da chuva. Os pássaros estão molhados e desiludidos. Cantam como quem se lamenta. Depois voam em pequenos trajetos e voltam ao mesmo lugar de onde saíram. Gosto de ouvir a chuva a bater nos vidros das janelas da casa abandonada. Sugerem pequenas pedradas de namorados. O musgo, das pedras do muro que suportam uma fonte, ampara pequenas gotas de água nos seus exíguos filamentos. Parecem pequenos diamantes nervosos. Quando fecho os olhos sinto o cheiro uniforme da humidade do ar misturado com o odor da terra molhada. Chove na superfície meiga da água do poço. Continua a chover quando me venho embora. O som da chave na fechadura do portão da quinta desperta um gato que dormita num vão de escada. Ao longe, um cão ladra pausadamente. Os meus passos ecoam no silêncio da calçada deserta. O meu olhar descai para a direita. Lembro-me então de abrir o guarda-chuva para aliviar a pressão. Volto para casa para ler um poema chinês que fala do voo de uma borboleta no meio da chuva.
Epístola oitava
Escrevo-te do S. Ainda ando cá por baixo a gozar os rendimentos, que, não sendo muitos, são os suficientes para me manter à tona da água, que, sendo salgada, é tão água como a outra, só que não se pode beber, senão secamos por dentro e isso é mau. Mesmo muito mau. Especialmente para a saúde. A saúde anda boa, graças a Deus. Deus é que não sei como passa. Mas não me é fácil adivinhar que, da forma como o mundo respira, o próprio e o subentendido se encontram bastante deprimidos. Os Homens são uns camelos forrados de lantejoulas e vestidos de orangotangos. Para me incomodar ainda mais do que aquilo que estou todos os dias, hoje perdi os meus óculos e, verdade seja dita, não enxergo grande coisa à vista desarmada. E olha que por aqui, segundo oiço comentar, há coisas dignas de serem vistas. Mesmo quando se faz vista grossa, que não é o mesmo que dizer que existe caça grossa à vista. Disso aqui já não se encontra. A caça grossa rumou a outras latitudes. Aqui subo muito. Depois também desço aquilo que subi. Só que descer é bem mais descansado do que subir. Mas lá vou tenteando as coisas como posso. Se é que posso tentear alguma coisa de que valha a pena conversar. Mas, caro amigo, sinto-me muitas vezes só. Mesmo no meio de milhares de concidadãos. A solidão é uma coisa muito pessoal. E, como sabes, eu sou muito pessoal. Talvez pessoal demais. Mas, como diz o povo, quando se sabe a comida sobra e quando se sobra a família cai ou quando a família cai outros valores mais altos se levantam. Que o mesmo é dizer que ande a vontade por onde andar a minha casa há de vir descansar. Mas no meio da confusão não sei bem onde a comida sabe, ou a família sobra. No entanto prometo pensar maduramente no assunto. PS - Não te esqueças de dar de comer às minhocas (Lumbricus terrestris). O resto que se lixe.