História da Espionagem - Notas e relatório confidencial (Agente José Manuel) PARTE V
Haiku nº 4: A grande cidade / espera iluminada / pela colheita das desilusões
Antes de continuarmos, temos de nos entender sobre outra coisa, os acrónimos. COMINT (communications intelligence), são as informações recolhidas a partir de comunicações humanas; ELINT (electronic intelligence), consiste no uso de sensores para obter dados especialmente sobre a rede de defesa inimiga, como alcance de radares, etc.; HUMINT (human intelligence), baseia-se em dados recolhidos por agentes no terreno, nos interrogatórios, etc. (é mais a nossa praia); IMINT (imagery intelligence), está relacionada com os dados adquiridos através de imagens captadas por satélite ou por aviões; SIGINT (signals intelligence), tem tudo a ver com as informações que resultam da interceção, análise, quebra de códigos, etc., emitidas por mecanismos eletrónicos.
Napoleão baseou o seu sistema militar no que ia recolhendo através do reconhecimento efetuado pela cavalaria no campo de batalha, mas, sobretudo, baseado na estratégia HUMINT, com espiões infiltrados no lado inimigo. Ou seja, o sucesso militar francês apoiava-se essencialmente na recolha de informações adequadas e concretas.
Mas voltemos aos EUA. Abraham Lincoln escolheu, para chefiar os seus serviços de informação Allan Pinkerton, um detetive que fugira da Escócia com a cabeça a prémio, tendo fundado a Pinkerton National Detetive Agency depois de chegar à América, a terra das oportunidades. À semelhança da nossa, ou vice-versa, esta agência fornecia serviços de informação e segurança a um consórcio composto por companhias ferroviárias. Pinkerton não percebia muito de serviços secretos, mas sabia o bastante relativamente ao trabalho básico realizado pelas forças policiais. E foi nisso que se concentrou: espiar e apanhar espiões. Com se diz cá na nossa terra: quem faz um cesto, faz um cento.
Mas, entendamo-nos, os serviços secretos não conseguem ganhar batalhas por si sós.
Na Guerra Civil Americana, a União beneficiou enormemente da capacidade que possuía para conseguir supremacia através da mais competente rede de espionagem de toda a guerra. E, o que é mais curioso, fê-lo a partir de Richmond, a capital confederada. À frente da rede estava Elizabeth Van Lew, uma pequena e extravagante solteirona, também conhecida como “Crazy Bett”, uma abolicionista convicta que há muito tinha libertado os seus próprios escravos negros. O mesmíssimo coronel George Sharpe, prestou homenagem ao sucesso inverosímil da superespia, declarando que ele se devia “à inteligência e devoção da senhorita Van Lew”. Apesar disso, mesmo tendo sobrevivido à Guerra Civil, passou o resto dos seus dias como uma verdadeira pária, na Virgínia. O Congresso americano recusou conceder-lhe qualquer tipo de gratificação monetária pela sua astúcia e valentia. Esta genuína mestra em espionagem viveu os seus últimos dias na solidão e na pobreza.
Agora vamos falar de um dos pais da espionagem moderna, o saxão Wilhelm Stieber, que possuía todas as qualidade inerentes a um verdadeiro agente dos serviços de informação: era intrujão, falso, traiçoeiro, fingido e um aliado perverso. Era advogado na Prússia onde se tornou num informador da polícia. Mais tarde foi admitido como inspetor. Durante a revolução de 1848, teve o mérito de ajudar a salvar o rei de uma multidão exaltada, atuação que fez com que fosse promovido a chefe da polícia. Pensa-se que o próprio Stieber, desempenhando o papel de agente provocador, pagou a elementos da populaça para tentarem assassinar o rei, mas com o respetivo aparato, para a polícia ter tempo de agir. Stieber e Otto von Bismark conceberam então os planos expansionistas em prol do Exército prussiano. Conceberam e estruturaram uma das principais potências secretas do século XIX. Durante os vinte anos seguintes, Stieber, na opinião de admiradores e detratores, foi o “cão de fila” de Bismark. Distribuiu por todo o império um rede de informadores clandestinos, daí a confidência de ele ser “chefe para 40 000 espiões”. Conhecia quase ao pormenor toda a situação interna da Prússia através dos inúmeros relatórios e dossiês que recebia.
A sua dedicação e o seu empenho eram tão grandes que, em pleno verão de 1865, o chefe da polícia secreta prussiana percorreu a Áustria e a Boémia, trajado como um vendedor ambulante e conduzindo numa carroça puxada por um cavalo. Parava em vilas e cidades para falar com as pessoas e com um sorriso nos lábios vendia-lhes a sua mercadoria. O seus alvos preferidos eram as unidades austríacas em manobras. Enquanto aos civis exibia para venda artefactos religiosos e imagens de santos, aos militares, sobretudo aos jovens e ricos oficias austríacos, aliciava-os com um estimulante conjunto de imagens pornográficas. Quando regressou a Berlim conseguiu elaborar para o imperador e o seu marechal-de-campo, Von Moltke, um relatório minucioso acerca dos austríacos, designadamente quanto às delineadas rotas de invasão da Áustria. Ou seja, a esmagadora vitória, em 1866, da Prússia sobre o Império Austro-húngaro, teve tudo a ver com a minuciosa e precisa informação recolhida pelo chefe da polícia secreta.
Em 1870, disfarçado de “empresário grego”, e fazendo-se acompanhar de uma mala cheia de ouro, foi à procura de oportunidades para investimento na indústria francesa, enquanto, dois seus assistentes contratavam dezenas de prostitutas onde existiam guarnições do exército gaulês. Os prussianos aliciaram ainda centenas de mulheres jovens, com “boa educação”, para desempenharem funções de serviçais e de empregadas nas messes dos oficiais franceses, nos hotéis de referência e nas residências dos presidentes de câmara e demais autoridades locais. Como se ainda não fosse suficiente, “o príncipe dos espiões”, como também era conhecido, foi autorizado por Bismarck a recrutar milhares de “trabalhadores rurais” para ajudarem os agricultores franceses durante a época das colheitas. Contas feitas, no seu auge, existia um grupo de 35 000 elementos controlados por oficiais alemães na reserva que tinham estabelecido negócios com as principais guarnições das mais importantes cidades francesas, começando por Paris e terminando em Marselha. Todo este prodigiosos trabalho foi controlado pessoalmente pelo “cão de Bismarck”.
Depois do fim da Guerra Franco-Prussiana, Stieber regressou a Berlim como chefe da polícia secreta de Bismarck. Instalado na capital do Império, o principal responsável pelos serviços de informação montou um bordel destinado à alta sociedade a que chamou “A Casa Verde”, local que passou a ser frequentado por diplomatas estrangeiros, aristocratas alemães e altas chefias militares. Quem sabe nunca esquece. A raposa pode mudar de pelo mas não muda de hábitos. (Agora até me vieram as lágrimas aos olhos com as saudades do Soso. Soso, querido, Soso. Ai Koba do meu coração.) todo o pessoal que ali passou a trabalhar foi cuidadosamente selecionado entre um grupo de agentes da sua confiança. Meretrizes, informação e segurança passaram a estar ali combinados em natural sinergia. As prostitutas, e os prostitutos, arrolados por Stieber logo passaram a informá-lo sobre os gostos e as antipatias dos distintos clientes, especialmente as suas perversões individuais. Armado com este manancial de informações acerca dos hábitos sexuais e ligações ilícitas, o “velho cachorro” de Bismarck pôde então chantagear muita da sociedade berlinense da época e também um grande número de visitantes estrangeiros de relevo.
Apesar das mais de vinte condecorações pelos seus serviços em prol de uma Alemanha unida e poderosa, nunca conseguiu obter a aceitação social que cobiçava. Na altura do seu concorrido funeral, em 1892, uma enorme multidão de aristocratas fez questão de estar presente, tendo ido atrás do féretro. Os jornais da época, no entanto, noticiaram que os presentes estavam estranhamente alegres. Em Berlim correu a piada de que a presença de tantos figurões foi devida ao facto de os presentes se quererem inteirar pessoalmente de que Stieber estava realmente morto, não fosse o Diabo tecê-las.
Mas, caros leitores, o trabalho do “príncipe dos espiões” continua vivo nos tempos que correm. De facto, este alemão foi o primeiro responsável pela organização de um serviço de informações nacional a utilizar agentes para monitorizar e controlar a imprensa, os bancos, os negócios e a indústria.
Agora peço-vos que nos detenhamos um pouco nos serviços de informação. Só com um jogo francamente mau é que perdemos uma partida de cartas quando conseguimos ver a mão do nosso adversário. Na política e na guerra, esta competência de ver a “mão do adversário” sempre foi de indubitável importância. No entanto, os serviços de informação militares, são perseguidos pela velha piada, qual Cinderela privada, de que a “inteligência militar é uma contradição de termos”. Maquiavel ensinou-nos que nunca devemos tentar ganhar pela força “o que se pode conquistar pelo logro”. Sun Tzu vai também ao âmago da questão: “Assim, o que permite que o sábio soberano e o bom general ataquem e conquistem e adquiram coisas fora do alcance dos homens comuns é a PRESCIÊNCIA.”
Nem sempre a vitória sorri aos audazes, mas todos sabemos que os êxitos dos serviços de informação resultam, de forma equivalente, das decisões tomadas por comandantes militares e políticos, bem assim como, em diferentes conjunturas, disso depende o futuro dos respetivos países e povos. Serviços de informação competentes ajudam na tomada de decisões. Mas o contrário também é verdadeiro: se eles forem incompetentes conduzem, inevitavelmente, a desastres, tanto políticos como militares. Mas se os serviços de informação ajudam, não conseguem tomar as decisões pelos seu líderes. A História está repleta de casos em que políticos e comandantes obstinados, ambiciosos e mal orientados ignoraram deliberadamente as provas gritantes que lhes foram apresentadas. Na maioria dos casos, o fracasso ficou a dever-se à falta de conhecimento do inimigo. E também ao excesso de confiança, ignorância, ingenuidade ou meramente a uma incapacidade manifesta para perceber os factos. As derrotas militares estão quase sempre, para não dizer invariavelmente, associadas a desaires dos serviços de informação. Apesar da sua indiscutível importância, a logística e os serviços de informação são muitas vezes tratados como um lugar de repouso ou um abrigo misterioso para indivíduos inteligentes, mas considerados difíceis. Mesmo nas democracias liberais, que sabem perfeitamente que não vale de muito matar o mensageiro, os portadores das más notícias rapidamente se podem tornar impopulares e ver-se marginalizados e esquecidos.
A noção de que a informação vital pode ser desacreditada ou alterada por ser considerada desagradável ou inexata fez com que os modernos serviços que a ela se dedicam passassem a ser ainda mais precisos, robustos e independentes na sua gestão. O grande objetivo é obrigar os “clientes” políticos ou militares, a reconhecer a verdade que têm à frente dos olhos. Existem atualmente sistemas concebidos para reduzir o erro ao mínimo.
Ensino sempre aos nossos agentes a definição de inteligência: É o processamento de informação rigorosa que tem de ser apresentada dentro de certos limites de tempo para permitir que um decisor determine qual a ação necessária a tomar. Está organizada da seguinte forma: Direção (pedido de informações), Compilação (plano de recolha); Comparação, Interpretação, Disseminação. Há dois aspetos fulcrais para a inteligência: precisão e atualidade. É crucial compreender a diferença entre “capacidades” de um potencial inimigo e as suas “intenções”. Exemplo: alguém tem uma arma na gaveta para armar ao pingarelho. Possui a “capacidade” para levar a efeito uma ação violenta. Apesar disso, nada existe que torne evidente tal “intenção”. Esse sujeito apenas revela ser uma ameaça “potencial”. No entanto, se alguém possuir um lápis afiado e o empunhar diante da cara de outrem, revelando a determinação evidente de cravá-lo entre os seus olhos, esse indivíduo passa evidentemente a ser extremamente perigoso. Ou seja, capacidades e intenções são conceitos bastante diferentes. Mas até os melhores serviços de informação fracassam quando são confrontados com as excentricidades e as obstinações da mente humana. Qual a razão que levou Saddam Hussein a invadir o Kuwait em 1991? O que originou a intervenção de Putin e do exército russo no Leste da Ucrânia? Conclui-se que os “contadores de feijões”, os homens aptos para a recolha de dados, geriram a “quintarola” dos serviços secretos e de informação com o propósito da desforra. Depois da recolha maciça de informação e da aquisição de grandes quantidades de dados, frequentemente com altos custos económicos, chegou-se a conclusões muita vezes erradas, a partir das provas recolhidas.
(continua...)