História da Espionagem - Notas e relatório confidencial (Agente José Manuel) PARTE XIII
Haiku nº 11: No lameiro / o mugido das vacas / tem a espessura do desespero
Mas voltemos à História e, desta vez, ao logro. Vamos focar-nos nos dias que antecederam o Dia D em 1944.
Aprendi na minha velha escola russa, e também na israelita, que tudo o que sucedeu foi uma brilhante operação de logro, planeada e organizada até ao ínfimo detalhe. Os camaradas russos designam este tipo de situação como maskirovka. É considerado como infeliz todo o estudante universitário eslavo ou judeu que não preste a devida importância ao “logro” no âmbito de um plano de guerra.
Os ardis são usados frequentemente no âmbito militar com dois objetivos essenciais: atrair ou forçar o inimigo a uma ação que possa ser explorada e fornecer ao inimigo uma quantidade suficiente de desinformação plausível capaz de permitir ao atacante dar um curso completamente diferente e desejável aos acontecimentos. Foi daí que nasceu a designada operação Bodyguard, definida como o Dia D.
Foi o velhinho Sunzi que escreveu: “Toda a guerra é baseada no engano. Assim, quando estamos capazes de atacar, temos de parecer o oposto; quando queremos fazer uso da força, temos de nos mostrar inativos; quando estamos perto, devemos fazer com que o adversário creia que estamos longe; quando estamos longe, temos de o fazer crer que estamos perto. Há que expor engodos para seduzir o adversário, simular desordem – e, depois, esmagá-los.”
A organização que ficou encarregada de levar a efeito o ardil decisivo para ludibriar o Alto-Comando alemão foi um único grupo denominado Equipa Aliada de Logro, mais conhecida pela inócua designação de Secção de Controlo de Londres, ou LCS.
Deixem que vos confesse que a LSC se revelou uma notável organização, nomeadamente na extraordinária tarefa de “confundir e derrotar” o pessoal dos serviços de informação alemães. Toda a equipa era composta por indivíduos excecionais. O chefe era o coronel John Bevan apoiado por homens da fibra de Dennis Wheatley, o romancista; por Sir Reginald Hoare, o banqueiro; e o tenente-coronel, e multilinguista, Sir Ronald Wingate. Segundo John Hughes-Wilson, a CLS pode gabar-se de possuir uma das mais conceituadas coleções de talentos e cérebros jamais reunidas em tempos de guerra. E possuíam um trunfo fundamental: todos os elementos que a compunham tinham uma vasta rede de contactos pessoais e vínculos com quase todos os centros de poder e influência no campo dos Aliados. O seu trabalho baseou-se na elaboração de interessantíssimas subtilezas e em distorções inteligentes destinadas a confundir e a enganar o pessoal alemão relativamente à data e ao local exatos dos desembarques e quanto ao tamanho preciso e à disposição das unidades aliadas.
Estes dados, diretamente direcionados ao sistema germânico que os recolhia com sofreguidão, estavam cheios de contradições. Alguns deles eram surpreendentemente verdadeiros, mas os estrategas alemães, por mais inteligentes que fossem, e eram-no na verdade, não conseguiam separar o trigo do joio, não distinguiam a verdade da mentira. Utilizando a linguagem atual, o objetivo da LCS consistia em submergir os serviços de inteligência alemães em ruído. Da filosofia dessas coisas até o nosso querido António Aleixo entendia: para a mentira ser segura e atingir profundidade tem de trazer à mistura qualquer coisa de verdade.
Para o logro ser plausível teve de ser encenado em escala natural. Para o efeito foi construído um enorme modelo de um depósito de combustível junto à costa, perto de Dover, tendo o embuste sido rematado com condutas, válvulas, tanques de armazenamento, incluindo ainda visitas de inspeção levadas a cabo pelo próprio rei Jorge VI, devidamente publicitadas na imprensa. Junto com a prenda, os alemães levavam também o embrulho.
Os intérpretes germânicos de fotografias foram também iludidos com fotografias de centenas de tanques estacionados ao longo dos pomares de Kent que não passavam de modelos de borracha insuflados, passando desse modo por genuínos tanques Sherman.
Idêntico logro foi utilizado com as embarcações de desembarque dispostas em longas filas, ancoradas em Medway, com a lavagem dos conveses realizada por supostos marinheiros.
Até dois agentes duplos, Brutus e Garbo, foram utilizados neste logro relatando todos os detalhes ficcionados aos seus controladores alemães.
O exigente aristocrata alemão Von Roenne, responsável pelo serviços de análise e inteligência alemães (que mais tarde viria a ser executado por ter participado no complot para assassinar Hitler), através do seu plano de recolha de dados, estava na posse dos principais elementos que lhe permitiam fazer uma ideia do que iria suceder. Os dados recolhidos de cariz HUMINT indicavam-lhe que se estava a desenvolver uma intensa preparação por parte dos Aliados. Os elementos de índole SIGINT confirmavam a chegada de novas informações militares ao Reino Unido. As próprias imagens aéreas ajudavam a aferir com clareza que existia uma enorme concentração de tropas e de material militar no canto Sudeste de Inglaterra.
A tudo isto podemos juntar a importância da quase certa participação do almirante Canaris, antigo chefe dos serviços militares de informação, o Abwehr, e discretamente afastado do cargo por Hitler, tendo passado à reserva.
(continua...)