Poema Infinito (185): a vulgaridade divina
O vento transforma a realidade e a memória fingida dos poetas. Os corpos inclinam-se na direção do mar. As falésias ficam em silêncio. O mar entra pela janela do horizonte. Os corpos dobram-se evitando os olhares. O olhar cria a memória. O tempo é uma pesada condenação. Os poemas eróticos soam a textos litúrgicos, como se fossem orações sexuais. Os homens e as mulheres rezam enquanto a tempestade desaba sobre os quintais. O padre é agora um poeta místico que apregoa a inspiração divina feita através da excessiva solidão. As mulheres e os homens dizem já não acreditar na razão das palavras. Os livros acumulam-se nas arcas. O seu silêncio devora tudo. Devora o esquecimento, as salas, os vãos das janelas, os rumores, a alegria, o choro murmurado dos objetos, as memórias, as relíquias, as sombras, o crepúsculo, o movimento inútil das palavras que dizem construir o tempo, os navios inacessíveis e o rosto abandonado das figuras mortas. Alguém proclama a desordem curva do tempo, a exigente aventura das palavras, a métrica ocidental da genialidade, a sabedoria lenta da antiguidade, a gramática poética dos presságios, a íntima conformidade do abandono, a perdição frígida dos sonhos, toda a indolência da alma, toda a estranha lógica dos navegadores, o hábito cínico das divindades, os estigmas da lucidez e o contágio exponencial da poesia. Urge voltar a inventar a prática celebração da genealogia, a solidão das cores do arco-íris, a prosódia das imagens, a prepositiva interpretação dos estigmas, a autoridade divina da vulgaridade, os poemas suspensos, os poetas oblíquos, a extensa nomenclatura dos lábios, o desespero enfático das cidades, o elogio dos coitos invertidos e a reversibilidade das metáforas. Os corpos fixam-se na obcecada transcendência do desejo e mostram-se disponíveis para as dúvidas íntimas. O tempo cansa os corpos e os olhares e transforma as almas e o lirismo subtil dos símbolos. Deus é agora um delírio crepuscular que domina a vontade das metáforas e o nome secreto das injustiças e a inspiração atormentada das formas e o desejo lírico das enumerações e a sábia virtude dos murmúrios. Deus filtra a loucura e persiste na sua ortografia do pecado e da moral. As intuições observam-nos, o crepúsculo incendeia-se, as tardes iluminam-se de profecias e tornam-se obscuras. Procuramos a raiz indómita da loucura, a matemática erótica dos sonhos, o choro das sombras, a memória amarga da sabedoria, a epiderme da música e do choro, os jardins suspensos das cidades afogadas, a voz divina das ruínas, a eternidade mórbida do pecado e da absolvição. As aves influenciam o inverno e voam na direção do desespero. As formas ficam assimétricas pelo desígnio imortal da estética, do misticismo, da tristeza, do estudo das almas em movimento, da descoberta da sombra que produzem as cores e do desenho ausente da realidade. Todos agora procuramos a evidência do mar, a solidão dos horizontes brancos. Todos os versos são uma possibilidade de ordem multiplicada. O mar entra-nos pelo quarto dentro. Recuperamos do esquecimento do corpo, da regulação da obscuridade, do movimento reflexo do coito, da perspetiva interior do abandono e da morte. A harmonia regula o desgosto. A luz foi-nos restituída pela variante musical das manhãs. As imagens transformam-se em energia poética. Por isso os místicos veneram as escritas insólitas. Os poetas andam à chuva. E molham-se de infinito.