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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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27
Fev14

Poema Infinito (187): o sítio onde morrem as manhãs

João Madureira

 

Nasci no sítio onde morrem as manhãs. Nasci, por isso, desiludido dos sonhos. Foi lá que ouvi pela primeira vez os mil ruídos do dia. Foi também lá onde libertei pela primeira vez o riso, enquanto ouvia uma ária modulada pela voz doce e sofrida da minha mãe. Aí as vozes dormitavam junto das crianças enquanto os velhos secavam a pele ao fumo e choravam lágrimas de espanto. As lareiras iluminavam os quartos enquanto os sonhos morriam preservando uma réstia da cintilação do entardecer. Durante os dias quentes, as mulheres juntavam-se à beira do poço e aliviavam as suas canseiras nos bancos de carvalho talhados a enxó. As tílias agitavam os seus ramos e aromatizavam o ar. Comentavam-se então os invernos doridos, a saudade verde dos lameiros, o sabor antigo dos caminhos, os mistérios da vida e as diversas portas por onde se entra neles. A minha mãe penteava-me vagarosamente os cabelos loiros enquanto a minha irmã mais velha lhe oferecia um ramo de flores silvestres para chamar a sua atenção. Alguém dizia muitas vezes: não tentes compreender a vida. E depois suspirava e estendia as mãos à procura dos seus anos jovens. Eu enfiava-me dentro dos meus segredos e aprendia a viver diminuindo como os anjos. Os homens encostados ao muro enegreciam como os ciprestes enquanto olhavam para os prados e para os gestos dos animais e para a demora das pedras dos caminhos estreitos. E continuavam esperando, sempre esperando, dentro do seu desalento. Foi então quando comecei a guardar essas imagens quietas e carregadas de angústia. Os sorrisos eram sempre ligeiros como asas de andorinha. Por isso as mulheres eram mansas como as tardes de estio e os homens eram agrestes como as noites de tempestade. A beleza era pudor. Até os perfumes dos frutos eram tímidos e fugidios. Só a angústia era enorme. Naquela altura ninguém contava histórias de sossego às crianças. As lendas estavam povoadas de lobos e de bruxas e de caminhos que iam dar a nenhures. Todos estranhavam as cantigas e as árvores em flor e os sonhos bons. Ninguém sabia o que era a verdade ou o bem. As suas mãos escaldavam quando nos tocavam. Apenas as mulheres choravam e louvavam o seu deus. Doía-lhes serem virgens. Doía-lhes florir. Doía-lhes o silêncio das estrelas do céu. Então rezavam terços intermináveis e enfraqueciam cada noite mais um pouco. Elas eram a dor que eu sentia. Elas eram as fêmeas feridas do milagre da vida. Por isso sofriam a dor dos filhos e o estalar seco da pele dos anciãos. O mundo que brilhava afastava-se sempre mais um pouco. Os meninos roubavam os nomes aos anjos e aqueciam-se nos seus desejos e observavam a iluminação do dia no olhar das suas mães. Aprendíamos então a encontrar as horas, a crescer no silêncio, a alinhar o vento, a ler a tarde no livro do paraíso e a ter medo das palavras rudes dos homens. Na minha meninice estive sempre sozinho a dar nome às coisas, a ouvir a angústia, a dar espaço a Deus, a esperar pelo sentido da vida, a estranhar as casas frias e encolhidas, a tentar conhecer os caminhos, a calcular o peso da luz do sol na face da minha mãe, a colocar devagar as palavras na minha boca, a sentir exatamente o desalento, a imaginar palavras luminosas para mais tarde as escrever, a espalhar a claridade, a esperar que me crescessem asas azuis nas costas para me confundirem com o céu, a perdoar para que me perdoassem, a encher-me de melancolia e a perguntar baixinho quanto tempo dura a eternidade. É por isso que já não tenho tempo nem espaço para mais desgostos. 

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