Poema Infinito (192): o tempo invisível das crianças
O inverno terminou a sua limpeza. Os teus olhos ficaram dourados. A felicidade pode trepar de novo pelos ramos e a seiva cantar a sua libertação do frio. As cotovias vencem a sua timidez abstrata e definem o seu voo impetuoso e concreto. O que era alto ficou mais alto ainda. Todos os movimentos se inscrevem na minha retina e iluminam-me o pensamento. A letargia dos domingos fica presa nos vasos sem flores. Os movimentos do mundo ficam mais concentrados e espessos. Toda a alma é provisória. Todo o tempo é definitivo. A luz adequa-se ao inverno e à sua placidez e à sua conclusão escura. Hoje olhamos a erva recente e refletimos sobre a sua brevidade total. O rio corre dentro do seu vagar para se entregar ao oceano. O sol de inverno fundamenta a nossa velhice e a sua luz alarga-se exuberante pelo esplendor polícromo dos caminhos. Os homens julgam-se ainda afeitos aos prodígios, pobres coitados. E assustam-se com a lisura momentânea da felicidade. O mundo é jubiloso quando o tempo fica intenso. O vagar é ainda mais visível quando sofremos. Passou rápido o tempo que nos permitiu ver tudo eternamente jovem. Agora a sua luz é remota. Os campos estão entregues às aves que as cercam com as suas melodias específicas. O desassossego brilha despertando em nós as surpresas virtuosas. O tempo antigo é uma reminiscência vagarosa. As crianças moram nas suas memórias brancas. Também eu fui possuído por essa alegria dolorosa da infância. Daqui já não vemos o mar. Este tempo já não assenta em marés. As imagens refletem a sua distância infinita feita de pontos adjacentes. Até a história nos aflige com a sua redenção de passado infinito, com a sua solidão de palavras estabelecidas, com a sua perentória invisibilidade de glória. As mulheres emergem na frescura sensível do seu silêncio. Sinto a tensão exposta do espaço à minha volta. Não me ensinaram como se constrói o esquecimento, nem a forma de evitar escutar os gritos rasgados das mulheres antigas que sonhavam filhos como árvores erguidas pelo deus do vento e do desespero. O tempo desce na sua ligeireza eterna deixando atrás de si o eixo das estações. A primavera ainda está presa dentro do seu casulo. O tempo é agora doce como a lentidão do mel. Deus ausentou-se mais uma vez do seu promontório antigo sem dizer a ninguém para onde ia. A sua nostalgia é uma massa compacta de invisibilidade e sofrimento. A tarde ergue a doce ligeireza da paciência. As crianças ficam agora abertas ao sossego noturno. As mães tricotam o seu sono vigilante, sacodem a solidão e escondem a sua alma na escuridão. As crianças sonham com barcos concretos e com o vento que agita os pinheiros e com gaivotas que sulcam o azul do céu e com imagens de mesas iluminadas e com o eco do silêncio e com o ritmo específico da paciência das suas mães e com a ausência pacífica dos seus pais e com a invisibilidade dos anjos da guarda e com a subtil firmeza dos avós e com a forma eterna do tempo e com a eternidade dos domingos e com todas as frases que são indício de luz e com o lento júbilo do amanhecer e com a penitência das viagens e com a impetuosa decadência dos milagres e com a glória redentora das brincadeiras e com a glória acesa do amor e do carinho e da sua ativa fé na verdade absoluta e na surpresa dos conceitos e na felicidade provisória do pensamento e no crescimento das palavras e no crescimento do seu corpo e da sua alma e das suas asas… e da luz… e do júbilo… e da firmeza e da… e da… e da… invisibilidade…