Poema Infinito (193): as palavras
Não podemos exprimir a sede de ser que nos move. Não podemos inverter a perspetiva. Talvez então nos seja permitido reconhecer aquilo que fomos e identificarmos os fragmentos dispersos do apocalipse. Nós somos essa relação viva que excede as palavras e as redime e lhes dá sentido. Nós somos as palavras que se desviam e que excedem a vida e que retêm toda a ilusão adolescente. As palavras correspondem sempre a incertezas, são como um lume frágil numa manhã fria. As palavras são ilusórias quando hesitam. Embora quem as caminha sempre as veja nuas como se fossem uma fronteira silenciosa de separação. Que Deus não una aquilo que as palavras separaram: a sua ilusão dispersa, a sua asceta solidão, o território comum do desaparecimento. Sentimo-nos atraídos pelos pontos de partida, pela glória unânime das vozes que saem, pela espessura deslizante das cores da angústia. Estaremos então pousados entre as margens do amanhecer acreditando na densidade mínima do amor, na grande tranquilidade das horas, na verdade dos outros, na rapidez justa da poesia, nas vozes que subsistem, no rosto da terra, na ondulação imperfeita do mar, nas vozes inesperadas, nos caminhos das palavras, nas evidências que nos comovem, na breve luminosidade dos olhares, nos espelhos do crepúsculo, na liberdade fugitiva dos sonhos, na brevidade temporal das casas, na aridez da luz, dos espaços e dos corpos, na fresca amargura da pureza, no sossego intempestivo dos livros, na indecisão das nuvens, na surdez das planícies, na deflagração dos milagres, na extensão do vento, nos desejos da terra, no sofrimento das lâmpadas, na unidade da memória, na dureza abandonada dos muros, na paciência das estradas, nos espaços abertos à luz, na sabedoria imóvel das pedras, na fluidez das sílabas do vento, nos cavalos inquietos que atravessam as auroras boreais, na inocência da água, na crueldade clara dos desertos, na impenetrável preciosidade das árvores, na linguagem elástica da pintura, no silêncio idêntico da liberdade, nos corpos suspensos pelo desejo. As palavras levantam-se e coincidem com a realidade e transformam-se na sua evidência fértil. Outrora os homens partilhavam as palavras e davam-nas ao vento. As mulheres enlaçavam-nas silenciosamente e guardavam-nas dentro de si como se fossem unidades brilhantes e perigosas. Dentro de si as vogais permaneciam vivas como abelhas. Por isso sonhavam com a glória e o sacrifício. Daí a paciência. Daí a improvável possibilidade da violência. Agora os poetas levantam as palavras e largam-nas sobre ecrãs brancos onde se misturam com imagens que são sombras e escrevem sobre a violência afirmando que elas, as palavras, estão imbuídas de frescura. E balbuciam as palavras que lhes disseram para não pronunciar. Por isso as palavras perderam a sua luz, a sua sombra e a sua seiva. Agora já não conseguem carregar-se de frutos, nem de beijos, nem de flores. Agora apenas carregam o silêncio da pobreza, a linguagem indolente dos exploradores, a espuma tóxica das sílabas mal divididas e olham para o mundo com a sua cumplicidade de veludo. As palavras já não refletem qualquer luz salvífica, são redondas como sombras obesas e lentas. Os fantasmas fixam os textos e deixam neles pequenas pegadas de aves. Os poemas são finas lâminas. As palavras são agora desprezo. E desalento. As palavras estão preenchidas de esquecimento. São círculos de energia negativa. As palavras sangram e ficam imóveis à espera da morte. À espera de alguém que as salve. À espera de poderem ser de novo magníficas.