Poema Infinito (194): crédulos e incrédulos
Guardo para sempre o súbito e permanente cheiro a livros, a suave respiração da casa, o teu corpo abrigado pelas manhãs de luz e assombro. Assim, serenamente e sem pressas. Prometi então proteger-te dos invernos e do tempo. Tu afagaste-me as feridas que mais ninguém via. Devagar, enquanto escutávamos a respiração um do outro, essa cálida e ofegante respiração, que era a entrada perfeita nos sonhos que desejávamos em uníssono. Aprendemos então a resguardarmo-nos dos medos e dos anseios. Demorávamos muito tempo a localizar a luz azul que de vez em quando entrava pela casa dentro e se escondia no sótão. Ou no meu cérebro. Ou no interior dos teus olhos, que eram verdes e tranquilos. As manhãs pertenciam-nos. O sol atravessava a rua e ia inundar as plantas de luz. E a varanda ficava quieta segurando os vasos. E os vasos ficavam quietos segurando a terra. E a terra ficava quieta segurando as flores. E as flores ficavam quietas segurando o teu olhar de deusa das pequenas coisas. Aprendemos cedo a escolher e a decidir. Por vezes carregavam-nos de espectros e de memórias cruas. Mas juntos procurávamos a confiança e a regeneração das palavras. Sempre nos deixámos tocar pelos lugares pequenos, onde as vozes são claras e mansas, onde os livros permanecem abertos admirando o céu. Era por eles que entravam as crianças, confundidas e doces, enquanto os mais velhos fingiam indiferença pela sua alegria totalitária. As mulheres, a princípio, trancavam-nas em casa e esperavam pelos seus homens que se abstinham de quase tudo. Diziam que gostavam de contar ninfas, de combater tempestades, de adormecer com os olhos abertos, de dar lustro aos cajados, ou às espadas, de perseguirem a cintilação do luar, de tocarem as suas mulheres de vez em quando, dando-lhes beijos naufragados, atirando-lhes redes de palavras, prometendo-lhes coitos interrompidos, enquanto as mulheres escutavam as vozes que emergiam dentro de si e depois fugiam para longe. Os homens, aflitos, abandonavam as mulheres, as crianças e os animais e iam à procura da chave do portão do templo eterno. Diziam que apenas lá dentro encontrariam o privilégio de decidir. As mulheres procuravam novos nomes e negavam tudo o que tinham visto antes. Então os livros, incrédulos, fechavam-se aprisionando as crianças, as cores e o tempo. Eu trazia novas palavras e colocava-as no teu regaço. Por vezes dispunha-as sobre a mesa e deixava que o tempo tomasse conta delas. O tempo alisava-as devagar e depois distribuía-as como se fosse o Zelota no momento de distribuir o pão e o peixe aos seus seguidores. O pão levedava, o tempo levedava e o vinho ficava áspero. O tempo durava menos tempo do que o habitual. Os seguidores do profeta vinham lá de longe, dirigidos e lavados pelo vento, e escondiam-se dentro dos livros que tinham permanecido abertos por serem desobedientes. E escondiam-se por detrás das suas mãos e das palavras dos livros e das palavras do líder. Esqueciam-se do seu cheiro, do cheiro dos seus corpos, do cheiro dos seus filhos e do cheiro dos campos. Riscavam então o ar e deixavam-se fascinar pela transparência da água das fontes. Os que acreditavam na guerra montavam nos seus cavalos e bebiam o ar. Os que acreditavam no amor copulavam as suas mulheres e bebiam-lhes a seiva do prazer. Os que acreditavam em Deus agarravam-se aos seus anjos da guarda e bebiam orações. Os incrédulos, esses bárbaros, acampavam no vale, matavam os javalis, assavam-nos em enormes fogueiras, opunham-se aos guerreiros, montavam os seus cavalos, bebiam o seu ar, copulavam as mulheres dos amantes, bebiam o seu sangue e, saciados de prazer, aprisionavam os anjos da guarda e escreviam as orações em tábuas de lei. Depois adormeciam repletos de vazio e eram depositados dentro dos livros por mão divina.