Poema Infinito (204): a castidade das pombas
As plantas agitam o seu magnetismo. Os animais gemem lentidões. Nós choramos mansamente dentro da nossa pequena felicidade. O tempo hoje nasceu limpo e puro como a alvorada. A conversa durante a noite foi carregada de saudade. Até a escuridão ficou espantada. Todos os poetas são estranhos quando surgem possuídos pela sua luz mais densa. Os seus olhos são como diamantes longínquos. Os seus rostos enchem-se de uma palidez visionária. As suas visões são como sonhos dissipados. Em si germina a luz que purifica as flores. Depois tudo muda. E eles ficam ternos como suspiros e desfalecem lentamente. E ficam místicos. E olham o céu com os seus olhos crepusculares. O mundo fica com a amplitude do voo das aves de grande porte. Os poetas ficam amplos e inquietos como ondas marítimas. E desejam ser amplos e consistentes. E meigos. E desejam cavalgar fadas e alvejar cisnes e falar com os deuses que fecundam a poesia com o seu sémen que é casto e culto. O espaço fica curvo. A noite fica muda e atrapalhada como um ideal ereto. É o tempo da magia. A natureza sente a idolatria dos malmequeres e o odor das amendoeiras e a magia do riso e a dor do esquecimento. A lua banha-se no mar. Fazemos-lhe companhia. Sonho com o macio regaço de minha mãe. Algumas flores deliram dentro do seu azul brilhante. Depois adoecem e soluçam e desfazem-se como espuma. Os poetas gemem as canções dolentes. Já não há almas puras, mas aparências. Sobretudo a aparência da paz. O mar chora. Os anjos ficam como pedra dura. Ficam rijos e soluçam. A seguir voam como se estivessem em Jerusalém junto ao calvário onde morreu Jesus. A luz redentora tornou a fenecer. Cristo também. A sua mãe morreu cheia de luz. O Sol imitiu as suas vibrações magnéticas. Deus não respondeu. Nem desta vez. Cristo morreu com a lividez humana estampada no rosto. A sua voz ficou santa. E ecoou pelos vales e pelas cidades e vilas e aldeias em redor. Mulheres virgens e viúvas começaram a dançar em volta do altar. Deus inundou o mundo de sonhos brancos. A Igreja ficou alva e tão gelada como a neve. O sonho desfez-se. Apareceu então Ofélia gabando-se de ter beijado Fernando Pessoa depois de ter bebido um copo de vinho branco e outro de vinho tinto e depois vomitar. Todos os sonhos se cumprem. Foi quando Alberto Caeiro descobriu que o pai de Jesus Cristo era duas pessoas, um velho carpinteiro chamado José e uma pomba estúpida que não era nem deste mundo nem do outro e nem sequer era pomba. E que a sua jovem e amada mãe não tinha amado antes de o parir. Então o amor começou a vicejar na dor. E começou a dirigir-se às pessoas a partir do altar e dentro da voz de homens que falavam na bondade dos cordeiros e das suas almas. Homens, apenas homens, exclusivamente homens que ouviam os pecados dos pecadores e das pecadoras em segredo e baixinho. Não fosse Deus enfurecer-se e acabar com o sonho das crianças batizadas que são como pombinhas brancas. E mansas. Pombinhas que aprendem a confortar-se com a dor. Sobretudo com a dor dos outros. Agora percebo a castidade de Jesus. E o seu pranto. E porque cantam as estrelas no céu. E qual a razão por que tais estrelas dormem no firmamento durante o dia e acordam à noite. E a razão dos beijos dos cristãos serem serenos e castos. E a razão de, definitivamente e para sempre, Deus corar quando lhe falam no pecado da carne.