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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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21
Ago14

Poema Infinito (212): metamorfoses

João Madureira

 

Vivemos no esquecimento das metamorfoses nascidas em dias preguiçosos. Elas prolongam-nos o prazer e a dor. O seu eco ressoa no ar da noite ativa. A angústia é agora uma carícia intemporal. Aproximamo-nos da nossa consciência cósmica. Vivemos com a finalidade de nos transformarmos em raízes. Elas são o nosso limite. As paredes das velhas casas desmoronam-se e choram em silêncio. Elas são o próprio silêncio. Tudo à sua volta possui a forma insensata do abandono. Os poucos idosos que ainda permanecem sentados na soleira das portas transformam-se em videntes. Todos cegaram. Agora apenas se mostram de perfil. A sua saúde unicamente aceita o sofrimento da luz. A sua aparência tem a forma das flores insípidas. Eles brotam do nada como o tempo. Não têm vergonha. São tão vagos como a luz do sol ou como os rios longínquos. A sua sabedoria celebra as estrelas e a noite. O seu tempo transborda. Obedecem apenas às impiedosas leis da urgência. As noites são agora nuas. São como mulheres claras de luar. A sua beleza apaga-se. Os idosos cantam tentando salvar-se dentro da sua solidão trágica. Os seus lábios ficaram lisos como pedras roladas. Nos campos nascem agora flores sem remorsos. Flores que não choram. As manhãs acordam quase sempre mal dispostas. São como comediantes amargos. Os idosos lembram-se de quando eram jovens e viviam apaixonados pela sua nudez e pela obsessão de vestir bem. Falavam quase sempre de lado e os seus olhos brilhavam sem calor. Falavam com muita consciência pois pensavam dessa forma evitar o envelhecimento. Foram eles que construíram a sua própria prisão. O mundo tinha a coloração dos seus sonhos escondidos nos baús. Apenas cultivavam a eternidade. Por debaixo dessa fina membrana, a realidade era gelada. Quando cresceram foram embebidos pelo tédio. E por aí se perderam. A imagem que tinham de si perdeu a inocência. Mas, por incrível que pareça, continuou inocente. Começaram a ser habitados pelas sombras. Começaram a matar a realidade bebendo vinho transparente e provando palavras judiciosas. Tremiam só de pensar em escapar a esse seu mundo indispensável. Aprenderam tarde demais que não existe insensatez dentro da loucura. De seu apenas possuem o seu sofrimento. Esse é o seu quinhão de sorte. Por isso sorriem como se estivessem mortos. E suam quando choram. Gostam de ser objetos de piedade. E têm uma vontade desvairada de comer e beber. Quando dormem sentem sempre uma nostalgia ardente. Esse é o seu penoso esforço de misericórdia. O seu coração, apesar da dor, está sempre vazio. Nos seus olhos a aurora ainda escavou um pequeno nicho. Em breve perderão a sua aparência e serão outra vez terra. Ganharão então a total plenitude da inexistência. Acolherão os prodígios e os mistérios. Serão bruma. Serão sementes de vento e memórias desconhecidas. Serão os olhos da noite. Serão tempestades, fumos de outono e cinzas de inverno. Serão florestas. Serão a boca imóvel de Deus. Serão as horas desfeitas. Serão a total ausência. Serão o tempo envolto pela sua mortalha branca. Serão as pérolas negras do esquecimento. 

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