Poema Infinito (220): os profetas e as mulheres
Debruça-se nos séculos o pó dos imortais. Acende-se a cabeça de Cervantes. As esfinges ficam presas nas hastes do vento. A boca passa a ser o limite dos mistérios. Os pensadores metálicos olham as pedras de Tebas e choram como o fazia Dante. Talvez o inferno seja a memória do tempo e o céu a limpidez cáustica do pecado. Pascal continua a viajar no seu comboio feito de nostalgia, amor e fama. Esse era o seu vício branco. Os seus olhos são números. Agora os cientistas vendem as suas ideias em barracas de feira. Os seus membros são voláteis. O seu coração já não gira à volta do mundo. Os profetas são como megafones. São tudo e não são nada. Ajoelham-se nos lajedos e choram perante as câmaras de televisão. São os servos utópicos da decadência. As suas imensas falas corroem o mundo e chegam apressadamente aos sentidos, como uma droga dura. As raízes cuidam das lágrimas do tempo. O sol, enorme, penetra nos pássaros. Os profetas absorvem a alegria. As suas metamorfoses fremem como se fossem um milagre. Várias mulheres dançam envoltas pela aurora. Os profetas pensam em lavar-lhes a alma. As suas mãos erguem uma ponte à entrada da noite. As mulheres engravidam, vítimas da sua febre tentadora. Os profetas falam-lhes com palavras abortadas, numa longa conversa comprimida. Lavam os séculos. O seu Deus é o léxico. As suas palavras são loucas. As suas mensagens são rápidas. As mulheres ficam sombrias por verem os pénis dos homens a entardecer. Colocam as mãos em concha e gemem. Bebem a idade por cálices de amargura. Em tempos foram felizes. Foram o motor do vento, os sonhos dos homens, a cama onde dormiam. Foram as suas estrelas confusas. Foram mães inquietas que tatearam o tempo à procura dos filhos. Os profetas afirmavam a presença dos deuses e definiam os homens como os seus desperdícios, como as suas sobras. Como a suas sombras. E louvavam o sol que assusta os animais. As mulheres sentiam então os seus sentimentos levados pelas manhãs. Mas não se renderam. Os pássaros pousam nas imagens. Uma espécie de fé banha a memória. As crianças ficam sonolentas olhando para a ciência das mães. O amor é um abismo onde os corações incham. Os profetas louvam o deus dos objetos, a história afeiçoada dos mortos, os séculos de caos, as vozes escritas na madeira, a cegueira do cosmos, os exílios, os vagões da loucura, as linhas do delírio, a tristeza das mãos assustadas dos anjos míopes. Os profetas recomeçam com as perguntas e afogam as imagens. As mulheres envelhecem. Os profetas recitam-lhes a poesia das tragédias e lembram-lhes a terra que devora os corpos. As mulheres adormecem embrulhadas no seu próprio cansaço. E exclamam que uma vida não se constrói apenas com anos, nem com metáforas. Os profetas movem os símbolos como se estivessem a jogar xadrez. O tempo fica liso. O desejo fica transparente. Os profetas põem máscaras novas. O seu céu fica cada vez mais abstrato, ligado aos homens por redes invisíveis de assombro. As palavras começam a sobejar-lhes. As pedras crescem debaixo dos seus pés. As suas mãos ficam frias como as do seu Deus. Repartem entre si o júbilo da morte. Hieronymus Bosch começa a pintá-los com a sua louca objetividade.