Poema Infinito (221): o dilúvio da criação
Trazes junto a ti o meu sossego, como se fosses um barco enfunado de silêncio e júbilo. As velas são o arroubo do pensamento. Por isso és o meu rumo certo. Por isso repetimos os olhares. O nosso rio vem do mar e entra pela floresta dentro. O vento fica cada vez mais concreto. A brisa é lenta. As aves regozijam-se com o azul da abóbada celeste. A solidão exige um eixo que a dirija. As andorinhas e as gaivotas sossegam com a persistência do rio. As imagens frustram-se com o tempo presente. A primavera é perene. O verão é altivo. O inverno é industrioso. Apenas o outono é uma imagem de sossego. O nevoeiro esconde-se no norte e escuta o rigor do pensamento. O tempo torna-se impercetível e espiritualiza o curso lento do rio. O tempo fica com rugas e transforma-se em memória. O espanto sobrevém sempre de dentro de nós. A sua magnificência é convincente. A eficácia torna as pessoas infelizes. Por isso as suas almas ardem como se fossem ocasiões de assombro. O amor requer uma eficácia exata. Ao crepúsculo, as gaivotas e as andorinhas escurecem os seus voos. Os olhares designam os dias de aflição. São como imagens de sossego invertidas. Contemplamos o limbo e ouvimos as asas dos anjos e o justíssimo gemido das anjas. O espaço torna-se nítido. Os espíritos duplicam-se. As imagens santas transformam-se em barcos. São agora veleiros dos tempos antigos. Os domingos continuam a ser dias santos. Por isso as pessoas vão às igrejas observar as abóbadas do tempo. As luzes dos domingos são sempre antigas. Os seus alicerces são nus. Hoje o nevoeiro vai comendo as casas e a felicidade transformou-se numa coisa abstrata. Os anjos e as anjas elevam-se nos céus e fulgem repletos de glória. Quando o sol se ausenta ficam escuros e as suas asas ficam sonolentas e frias. A sua tarefa divina consiste em recolher as palavras malditas do fundo da memória dos humanos pois sabem que toda a glória se consuma no pecado. O mar absorve-lhes a exaltação. As anjas e os anjos enaltecem-lhe a espuma. As luzes do crepúsculo tornam-se difusas. O rio oculta as suas águas mais profundas. Deus calcula o peso do silêncio e desespera. O seu pensamento ajusta-se à drástica abundância da angústia. Deus possui a doce exaltação dos citrinos. O mar repete-se nas suas ondas. E ergue a luz dos barcos que naufragaram. Deus é como o mar, uma resplandecência antiga inundada de sal. Deus é a porta do tempo. O mar brilha na escura rebeldia dos penhascos. Deus procura o ímpeto da certeza na força oculta do mar. O próximo dilúvio será constituído por tempestades de palavras. Nessa altura, Deus bloqueará a mecânica efetiva do tempo. Tudo parará. Os pássaros ficarão sem o conforto do seu calor. Todos os animais passarão ao estado letárgico. Os anjos e as anjas ficarão encurralados num sono vigiado. As palavras transformar-se-ão em fogo. O poente ficará em brasa. Tudo o que é vagaroso e humano será submerso pela imensa redenção do apocalipse. Então os anjos e as anjas lembrar-se-ão de como eram abençoados quando voavam sofrendo a eterna felicidade da sua lisura assexuada, quando o tempo possuía a fluência imortal da redenção, quando Deus dançava dentro da sua fluência abstrata, como se quisesse morrer, e quando o mundo se abria à tormentosa perpetuidade do Criador.

