Poema Infinito (222): história clássica
Deusas antigas gregas continuam a habitar os vastos céus, ainda escravas. Ainda estranhas. E suplicantes. Todas muito próximas da sua antiga formusura. São filhas dos homens, das suas humildes grandezas e dos seus singelos dons naturais. Filhas dos homens mil vezes ditosos que habitam a terra e veneram as suas mães e os seus irmãos. Elas continuam a sentir intensamente uma contínua alegria na alma. E, mesmo grávidas, dançam. Apesar da felicidade e da riqueza, os seus olhos continuam mortais. A sua destreza ergue-se no ar como palmeiras bravas. Por vezes acompanham os seus amantes nas viagens e assistem às guerras, espantadas e surpreendidas. E sentem um medo terrível de tocar os seus corpos afetados. Permanecem junto ao mar vendo os conquistadores embriagarem-se de sexo. E vinho. E sangue. Sobre as montanhas sopram fortes rajadas. O tempo encolhe. Alguns deuses superiores trazem-lhes, para proveito conveniente, novas desgraças. E dizem-lhes que têm piedade deles por conseguirem suportar tanto mal com tamanha paciência e submissão. Dizem-lhes ainda que aos que conseguirem triunfar lhes concederão a ventura do desassombro. E que atarão as suas deusas amantes à cintura. E que as envolverão de sentimentos harmoniosos. E que compensarão os seus desgostos e as suas insatisfações. E que distribuirão felicidade às insensatas e paciência às inférteis. As deusas, desiludidas, suplicam então que as deixem amar os deuses imortais. Essas criaturas divinas que fazem tremer de medo os homens simples e que vivem lá longe no mar, rodeadas de ondas alterosas e de expectativas celestiais. Mas eis que a felicidade chega errante, bajulando de magnanimidade as divindades embuçadas. Elas banham-se nos rios de púrpura, permitindo que os mortais lhes ofereçam os seus óleos sacros dentro de frascos dourados. Os mortais rejubilam e oferecem-lhes os filhos mais belos para que os utilizem em privado. Os filhos dos mortais limpam dos corpos o óleo com que foram ungidos e vestem roupas limpas. E derramam sobre os deuses ocultos ouro em pó. E exibem as suas artes e os seus engenhos. E imploram que as celestes divindades espalhem a graça pelas suas cabeças. Vendo-os indiferentes, os jovens choram irradiando beleza e desespero. E humildade. Afinal, tudo foi feito contra a secreta vontade dos deuses. E eles afastaram-se ainda mais. E avisaram que os mortais não sabem obedecer. Pois não obedece quem quer, mas sim quem sabe. Obedecer, todos os mortais o deviam saber, é uma arte difícil. Isso foi o que lhes ensinaram. Desde sempre. E para sempre. Adestraram-nos eternamente na difícil arte da obediência. Na delicada arte da submissão. Desesperados, os mortais foram-se dali percorrendo os campos, caminhando rapidamente como servos que são, atrás das cavalgaduras e dos carros. E percorreram os caminhos velhos. E cercaram a cidade, que já estava sitiada por outros servos, e quando conseguiram penetrar por uma entrada secreta, mataram os servos, os servos dos servos e os servos dos servos dos servos. E estupraram todas as mulheres, sem distinção alguma. E incendiaram as casas, os castelos e até as naus que se encontravam em porto seguro. Depois, despojados das armas ensanguentadas, entraram no templo e puseram-se a rezar.