Poema Infinito (243): verdade?
Gravita no anil a crispação sonora dos rouxinóis. A aldeia está serena. As searas ondulam. A noite teve o seu ataque de epilepsia. Pelos caminhos andam os homens amargos cobertos pela sua nudez hiperbólica. Antigamente, à luz dos lampadários, distribuía-se o pão e a salvação. Abraçava-se a Lua. Os campos pareciam felizes. As rolas entoavam baladas tristes. Os cardos exibiam as suas setas aguçadas, os silvados floriam, a terra ria-se, os bois ruminavam. A tristeza era heroica. As crianças saltavam pelos matagais e desciam às fontes a sorrir e a cantar. Depois chegaram as cidades, desmedidas como o gigante Adamastor, condenando o nosso pequeno mundo. O seu prazer era feito de mágoa. Pelas estradas, o vento passeava a sua fúria inconstante. Janeiro era um mês de sombras e de espectros adivinhos. O frio açoitava as vielas. O tempo mudava a rama dos ciprestes. As oliveiras afastavam o ódio e a guerra. Na tua boca rebentavam já os primeiros beijos. Vivíamos ao ritmo das orações. Nas varandas, as manhãs depositavam o orvalho e a inquietação sôfrega de viver. A verdade era crua e fria. Falávamos da saudade e também da sua ausência. E da angústia. E do gosto amargo da infelicidade. Invocávamos a desolação dos jardins e nela colocávamos os sonhos, a comoção do amor, as raízes do desejo, o tom severo do desassossego. Os teus olhos ficavam rasos de água. Confidenciavas-me o teu silêncio. A beleza possui a sua própria arrogância. Estrelas novas povoavam o céu. Os altares das igrejas ficavam azuis, os olhos dos devotos dilatavam-se. As almas sagradas entretinham-se a brincar o jogo da vida e da morte. Descobrimos que Deus nunca se iria casar. Os sonhos passaram a ser incertos. Misturaram-se com a névoa das manhãs. Pensar em viajar era o início de um agoiro com sabor a tempestade. Acrescentávamos mais ânsia à própria ânsia. Aos homens começaram a surgir-lhes asas nas costas e a nascer-lhes no peito o estranho desejo de voar. A princípio, os seus corpos embaciaram o horizonte. Muitos deles ficaram exaustos. As suas vontades geraram holocaustos. As anjas amamentaram os lobos com os seus mamilos rútilos de desejo e desespero. Os filhos nasceram ingénuos, como se fossem pastores de olhos verdes. Mas eram todos cegos à razão. As suas lágrimas não tinham destino algum. Depois fizeram-se guerreiros e encheram-se de glória. Arredondaram o tempo, ampliaram as horas, subiram às montanhas mais altas, embebedaram-se de eternidade, juntaram os ventos, esculpiram almas opacas, curvaram e torceram a timidez e o receio, rasgaram os oceanos, beberam a correnteza das águas mais bravas, aprenderam a persistência e afeiçoaram-se às espadas e ao sofrimento. Descobriram que o infinito possui uma boca gelada, que a arquitetura do tempo é impalpável, que a idade é um assassino neutro. E partiram. E chegaram. E voltaram a parir. Transformaram-se em aves aprisionadas, como se fossem ilhas. Ilhas presas ao mar. Deitaram fora os segredos, a esperança, os impulsos, o pasmo e a beleza. Transformaram a luz em sombra. Encafuaram os sonhos nos bornais e partiram de novo. Lembraram-se então das memórias dos seus pais quando caçavam porcos-bravos e perdizes, quando definiam a posição dos dedos para orarem, ou como os seus lábios beijavam os oráculos, ou como desejavam ser mar ou floresta, espuma ou neblina. Sentiram então que as suas asas começaram a lenhificar. Transformaram-se em árvores misteriosas que os santeiros usam para confecionarem os seus deuses de pau com asas pintadas de azul, como os altares. A verdade continua a ser fria e crua.