Poema Infinito (251): fome de luz
Aprendemos de repente a desobedecer ao mundo. Essa é uma outra forma de vida. Não gostamos que nos emprestem os dias, nem os nomes, nem o amor. Tudo isso é mentira. Também não se emprestam os pais. É durante a noite que nos procuramos a nós próprios, percorrendo o labirinto deserto das ruas da cidade. Somos como atores que se escondem dentro do palco do seu teatro. Todas as mentiras deixam atrás de si um rasto de pranto e assombro. Os olhares ficam embaciados. Apoderamo-nos da coragem do vento. A verdade também se confessa. Não tem medo de magoar. Amamos sempre através da memória. Sentimo-nos libertos e purificados. Este é o protótipo da noite automática. Uma noite em tudo idêntica à primeira noite do mundo que surgiu antes do primeiro dia. As portas do tempo não se conseguem fechar. O diabo prolonga a agonia do escuro. O dia continua a ser uma incerteza. A sua utilidade é inútil. Durante a madrugada saudamos o orvalho, que é uma espécie de purgatório humano. As luzes apagam-se. As vozes assombram-se quando penetram no vazio. Segredam os nomes esquecidos. As imagens sobrepõem-se umas às outras. Luminosas raparigas descem a rua abraçando vários soldados desconhecidos. Concluem que os mortos tinham mesmo de morrer, como se essa fosse a fórmula com que se fabricam os pesadelos infantis. Não vale a pena tentarmos perceber a aleatoriedade da vida. O seu motivo mais plausível remete-nos sempre para o infinito. Através dos vitrais da catedral, a luz revela a sua forma sagrada. O seu esplendor anuncia a forma perfeita da nulidade divina. De pouco valem as preces. Não é a doçura do mel o que mata a fome. A natureza não consegue responder à metamorfose da divindade. Deixemo-nos levar pelo esquecimento. Não vale a pena cantar o tempo que passou, nem a sua sombra refletida em nós. Continuamos a atravessar os jardins que alguém deixou a arder. Perdemos o regresso quando pensamos na sua ineficácia. A memória dos rostos é indelével. Chove na cidade. Sílabas antigas desaguam no rio triste. Ninguém adivinha o rumo do vento. Nos teus olhos dormem estrelas incandescentes. Nelas me aqueço. As vozes chegam até nós suspensas. Ao longe brilha o arco-íris. O teu rosto adquiriu a textura da seda. As verdades já não se escrevem com letras maiúsculas. Os comboios atravessam mil cidades. Difícil é adivinhar-lhes os labirintos com saída. Mil razões tem o futuro para o ser. A nossa infância ficou fria no passado. Muitos dos seus sonhos não se revelaram. O seu sobressalto foi desenhado em mapas inventados. O passado também pode ser uma ficção. Ou uma fixação. Ou ambas as coisas. O passado é como um espelho morto, como uma canção que soubemos e já esquecemos. Agora somos como músicos que devoram a sua própria música. As nossas bocas estão cheias de segredos. Dançamos enquanto vemos a luz subir no ar. Repetimos os jogos, a sua surda fantasia, o universo pintado de fresco. A vida navega dentro de um barco de papel lançado ao mar da humanidade. A nossa sede busca uma outra fonte, uma outra água, uma outra fantasia. Perdemos os gestos mais espontâneos sem saber porquê. Nem todas as viagens têm uma razão. O caminho para o destino é sempre ziguezagueante. A luz ainda nasce dentro de nós. Ainda conseguimos abraçar o arco-íris.