Poema Infinito (263): a aprendizagem do desaparecimento
Ontem fui ver as rimas que crescem nos campos entre os álamos e o milho. A sua voz continua tranquila, como os gestos dos filhos no momento de adormecer. Os pilriteiros floresciam de saudade. Os homens olhavam a verdade de frente e endureciam as linhas do rosto. Lembrei-me então dos dias que eram como espelhos onde as águas corriam redondas e serenas. O comboio ainda passava lá em baixo lento e vago como as orações. Os figos eram da cor do oiro ardente e tão doces como a voz da minha avó. Ela costumava lavar logo de manhã o seu cabelo branco, o seu rosto fino e a sua voz pura. O amor pelo meu avô já falecido doía-lhe como se tivesse silvas em volta do coração. O seu silêncio tomava conta das paredes, do tempo e das janelas fechadas. O silêncio subia as escadas, tomava conta da cozinha e adormecia nas camas frias dos quartos. Por vezes os seus olhos transformavam-se em cristais lunares que perseguiam as andorinhas. Ela sabia que a morte dos outros também nos mata a nós. Que é como os lobos que não vemos mas persentimos, como os lobos que nos perseguem com o seu olhar sossegado. A minha avó adormecia sempre de mãos abertas e sonhava com rosas doces misturadas com cravos de esquecimento que nasciam no meio dos campos verdes. As árvores tinham sempre a forma do desalento e cresciam como se fossem romances tristes cheios de pombas que procuravam a sua própria sombra nas águas dos rios. As ovelhas eram sempre brancas como os rebanhos de Deus. A minha avó também sonhava com anjos azuis que pronunciavam palavras desertas de sentido. Dizia sempre que lhe apetecia chorar. Então acordava e ficava quieta quatro ou cinco longos segundos. Depois olhava para mim e sorria como se tivesse visto o meu avô. Pelo menos era isso o que eu pensava. Também me lembro do meu avô e do seu rosto de soldado de uma guerra tardia, das pedras que atirava para longe como se fossem armas cegas, dos seus olhos que andavam sempre à deriva, das noites em que se esforçava para inventar os dias, dos seus ossos feridos, das suas palavras temerárias, da sua angústia quando me dizia que a sua vida era como palha centeia exposta ao vento. A sombra das árvores sempre lhe embuçou a vida até ao derradeiro momento em que entregou a alma ao criador e o corpo à terra que sempre o escravizou. Com as tábuas dos castanheiros talhadas pelo ferro do serrote e do machado construiu escanos, mesas, bancos e arcas onde guardava o centeio, o fumeiro e o pouco dinheiro que possuía. Andava sempre com o corpo moído de sono e míngua. No fim das refeições, quando comia à mesa, apoiava os cotovelos nas tábuas que aparou e contava histórias de abundância repletas de vacas de úberes cheios, de extensas planícies, de montes repletos de perdizes e árvores, de damas vestidas de linho branco e olhos enamorados que molhavam os pés nas águas limpas dos rios e dormiam a sesta debaixo dos salgueiros. Os seus contos duravam o tempo do seu sorriso. No fim, levantava-se ao mesmo tempo que o seu coração e ia aparelhar os animais na companhia da sua inseparável solidão. As noites gastava-as a arder como se vestisse pedras frias. A morte escolheu-o numa noite de distração. Isso é o que pensa a minha avó quando os olhos se lhe enchem de tristeza e morte.