Poema Infinito (267): simulacro
Bela é a dignidade dos simples pois não se apercebem da sua caducidade. A sua nobreza tem a exatidão do pó. Os outros possuem a retórica do mármore e a solenidade desejável da sombra. Despidos do latim, enganam a paz com a morte. Já não vibram as espadas, apenas restam o sono e a indiferença. O espaço e o tempo apagaram-lhes a alma. O vento e as aves ondeiam sobre as árvores. A tarde apaga-se. As estrelas mais antigas começam a surgir no céu. A sua luz é dispersa. Nos círculos de água ordenam-se as constelações. Cheira a jasmim e a madressilva. Os poemas começam a adquirir humidade. Chegam os plebeus com os seus passos entorpecidos, ignoram as ruas, esgotam-se no suave declínio das horas, comovem-se com a mediania das casas, limpam as suas lágrimas, recuperam as canções que lhes ensinaram quando eram quase meninos. As casas são como candeeiros onde arde a vida dos homens. Os rostos dos simples ficam claros. Acalmam-se. As árvores atenuam a sua rigidez de estátuas. Esquecem o destino, o tempo que lhes roubaram, as mitologias domésticas e o aroma das suas brincadeiras mais floridas. Acreditaram na autoridade das espadas, nas palavras indolentes, nos deuses do jogo. Dominaram o espaço, enfrentaram a luz, eternizaram as encruzilhadas, expandiram a valentia, arrostaram montanhas e exércitos, foram audazes no hábito e no uso das lanças, alguns escolheram o desterro. No fim tudo ficou reduzido a cinzas e a uma espécie de glória enferrujada. O tempo agora veste-se com as cores do perdão, já não possui a linguagem da aventura e do assombro. As vozes dos seus antepassados ficaram definitivamente frouxas. O esquecimento apagou o índice dos mortos, mas as feridas continuam abertas. Nem os deuses as conseguem sarar. Os factos são os factos. Por isso vivem numa aflição quotidiana, digerindo as exaltações, as penas e as incertezas. Deus esqueceu-se deles. E eles esqueceram-se de Deus. O ódio é a sua esmola. A sua bebedeira permanente. Convocam a morte por metáforas e obrigam-na a esperar. O acaso do tempo é como uma fonte de onde jorram os milagres derradeiros. Os arrabaldes onde habitam são o reflexo do tédio. Os seus passos vacilam quando pisam a linha do horizonte. Libertaram-se da memória e da fé. Libertaram-se do futuro. Os seus olhos já não partilham a esperança. As suas sombras adiantam-se-lhes. Os jardins vestem-se de um verde inútil. Festejam um dia de festa em honra da pobreza da terra. Não têm opinião, não possuem nem nome nem pátria. São uma espécie de almas arbitrárias que dizem acreditar no milagre implacável da dor e na estupefação do prazer. No fim do desterro voltaram às casas da sua infância. Estranharam os espaços, repetiram os caminhos velhos, tocaram as árvores, acarinharam as palavras esquecidas, observaram os céus, a multidão de estrelas, a fragilidade da lua, compreenderam os pátios e os muros e os abismos que povoam as ruas. Identificaram, e identificaram-se, com a universalidade da noite. Acreditaram no líder que os convenceu de que o mundo é uma atividade da mente. Mergulharam num sono desordenado. Ressurgiram no meio do dia. Procuraram as suas casas, que refletiam a glacial luz branca do silêncio. Quando acordaram estavam dentro dos espelhos apagando a sua própria imagem.