Poema Infinito (269): a lei da vida
É tempo de apagar o fogo das minhas fantasias e de me concentrar no delicioso assombro dos teus olhos. Libertei-me do absorto estigma dos escolhidos, do resoluto caminho dos louvadores, da reverente distância dos poderosos. O meu caminho é outro. Persigo o desejo insensato de acelerar a letargia do tempo. Os sonhos movem-se em pesadas carroças que andam por caminhos silenciosos. A pele greta, os olhos queimam-se. A memória transformou-se em vários elementos dispersos. Os corpos conservam a sua frágil armação. Muitos deles são agora pálidos frutos estéreis. É a lei da vida. Louva-se o esquecimento que avança através das pedras e da excelsa estirpe dos séculos. São ainda vastas as janelas da madrugada. É inebriante o orgulho do tempo. Os humanos conquistaram os territórios com a confusão das guerras, fazendo submergir as estátuas mais violentas. Acenderam-se fogueiras nos caminhos, já cicatrizaram os lamentos, mas os deuses defensores da fé redentora continuam insaciáveis. Pregam-se doutrinas antigas, as águas da verdade são misturadas com a história gordurosa. Alguns homens enfunam-se de soberbo prestígio e morrem sem acreditar na impúdica evidência da mortalidade. Andamos com os sonhos às costas percorrendo os caminhos de sempre sem sequer nos apercebermos da frescura do vento que anuncia a tarde. As andorinhas vigiam as nossas insónias. A paz e o tempo diluem a memória dos mortos. Sinto-me como um agricultor plantando eucaliptos na areia de uma praia. Os faunos acendem as luzes nos bosques para atraírem as fêmeas mais jovens. Elas levantam os vestidos e mostram a sua nudez. E gemem. Os seus corpos são brancos. A água do rio lavará as impurezas e renovará as fontes do desejo. É a lei da vida. A incredulidade tem sempre um motivo. A felicidade não. Os guerreiros dos sonhos esperam há anos pelas suas cavalgadas mais furiosas, arrancando-nos do leito durante a madrugada. Começa assim a longa viagem dos pesadelos. O musgo cobre as paredes. Criaturas esquecidas habitam as ruínas. Nos pátios das casas aninham-se as sombras. Os dias são cortados pela lâmina das horas e ficam mais finos. Uma chuva insistente faz crescer a erva da dor. Os carris dos comboios que marcavam a terra e definiam o trilho oxidaram de maneira irreversível. Pisamos o pó da arca perdida. Os pássaros e os poemas fogem para longe. O seu ruído detém-se quando nos aproximamos. Lembram-nos palavras do passado, o seu espectro pálido, a chave que abre a porta das memórias, a solidão das construções antigas, os signos da transformação, os navegadores silenciosos, a divergente orientação do desprezo, a desordem do céu, a razão e o seu esquecimento. As crenças mais firmes transformaram-se nos desejos mais insatisfeitos. É a lei da vida. A cortina da janela ofusca-nos a vista da fúria das aves. Moderamos a voz, o orgulho e o desejo. Dissolvemos mais um pouco a esperança. Continuamos a desconfiar da serenidade das árvores mais frondosas, da condição do tempo, da verdura e da sua aparente maturação, dos sonhos mais detalhados, das lentas cerimónias da glorificação. Há muito que a música se calou. O vento lá fora continua a varrer o passado. Sem descanso. A vida continua a oferecer-nos o teorema delicado dos afetos e a ensinar-nos a irrevogável lei do desaparecimento.