Poema Infinito (290): a espera das horas
Nasci submisso à minha insatisfação, não sei mentir, não sei enganar, não me sei conformar, defini sair mesmo antes de entrar no paraíso. Habituei-me a descascar o tempo com a minha navalha e nele gravar a minha fúria interior. O seu canto compromete toda a eternidade. Ergo então a minha voz e canto o céu e a terra com a ventura dos rouxinóis, objetivando a cruel intemporalidade dos moinhos, os gritos que as nortadas transportam, a violência faminta da ternura e do desamparo. Adquiri em pequeno o instinto adaptativo dos bichos, sem conseguir ainda definir quando a razão se baseia no assombro, na beleza ou é apenas fruto da sua defesa legítima. O sol levanta-se sempre do mesmo lado, daquele em que eu adormeço. Os seus raios rasgam o céu e iluminam de repente a pupila dos videntes que enfeitiçam as noites. Estão abertos os portões da madrugada. O vagar toma conta das horas. Os dias gotejam dentro das ampulhetas. Aí adquirem a sua fria cadência, o azedume, a profunda nitidez de negativo fotográfico. A obstinação humana cresce por detrás de cada gesto, de cada grito. Desço por dentro de mim. Aí encontro a inocência, a nudez da claridade, o assombro, os abismos perpétuos, a noturna embriaguez do desejo, o heroísmo hiperbólico dos poetas. A vontade é cercada pela sua negação. A força transforma Sansão na sua própria inaptidão. O seu corpo é a sua própria cadeia. A sua teimosia é coisa de cabeleireiro. Mais cedo ou mais tarde, todos os muros acabam por ceder. A rebelião degrada-se. O desespero consome-se a si próprio. A paixão, despois de rasgar a própria carne, transforma-se em sereia, que é um dos resultados do pecado original. Por isso os versos de amor são salgados e os segredos são tão fingidos como o mais cândido dos corais. O tempo continua a correr depressa, cada vez mais depressa. Leva-nos em braços, embalando-nos com os seus movimentos de pasmo e adulação. Escuto-lhe a intenção, o seu tropel agoirento. A todos nos sacrifica por veneração ao seu deus desconhecido. As horas que passam são como pedras lançadas a um poço. A esperança devora-nos com a boca aberta. As palavras recusam-se a sentir os sonhos. Estas palavras são sábias. Sabem que os jardins mais bonitos estão repletos de flores ausentes. A sua semente está dentro de mim. A minha memória continua cheia de poemas. De pouco me serve. As palavras sintetizam imagens. Os versos demoram. As horas esperam pelos poetas. Os poetas esperam pelas horas. Da noite ergue-se a madrugada. Nenhum sinal celeste anuncia o próximo milagre. Os adivinhos já não conseguem adivinhar. Os anos são infinitos. As teias do tempo ensinam-nos o instinto das rotinas. Teimamos no entusiasmo de empurrar os cegos contra a claridade. O destino aperta-nos contra a exatidão da demora. Afinal somos de outro passado. Os deuses desistiram dos feiticeiros, já não acreditam nos limites dos seus encantamentos nem nos raros momentos de inspiração dos poetas. Nem no milagre de um poema. Os deuses passaram a crer em teoremas indemonstráveis, na impaciência do mar, nos versos que fulminam, no transe hipnótico das horas, nos génios que se alimentam de lume e da fantasia das bombas. O céu é agora um paraíso desértico imenso, sem proibições, suspenso no olimpo, tão inútil como um labirinto natural, onde a eternidade tem o preço do fingimento e a aceitação do sossego como arma universal.