Poema Infinito (302): história noturna
Antes da maldição, os lobisomens combatiam o Diabo e os feiticeiros. Quando morriam iam para o paraíso. Eram os cães de Deus. Perseguiam os demónios e as bruxas que se armavam com açoites de ferro e vassouras feitas de rabos de cavalo. Combatiam pela fertilização dos campos. Nas refregas lutavam também as bravas mulheres do apocalipse. Todos combatiam as bruxas e os mostrengos do fim do mar. As metamorfoses eram múltiplas, mas temporárias. Os humanos transformavam-se em leopardos, hienas, tigres e jaguares. Os lobisomens eram as vítimas inocentes do destino. Um deus indisposto com as suas virtudes transformou-os em devoradores de rebanhos e crianças. Alguns escaparam ao divertimento divino e transfiguraram-se em homens-soldados que se armavam com ramos de erva-doce e bonitos caules de cevada. Nasceram assim as procissões. Os espíritos libertados entravam em êxtase ou catalepsia. As insolências, naqueles tempos, eram alegres, pois estavam sempre associadas ao sarcasmo. Só assim era possível enfrentar os inquisidores. Os homens de bem separavam as águas dos rios que atravessavam com as chicotadas dos seus bastões. Muitos dos que ainda guardavam dentro de si a alma de lobo entravam nas adegas e esvaziavam os tonéis de vinho, de hidromel e de cerveja. Ninguém percebia o sentido de tudo isso. Um deus maior decidiu então formar os seus filhos ainda dentro da barriga das mães, enquanto dormiam e depois de copularem. Seguidamente colocaram-nos sob as suas asas e fizeram-nos voar no céu como se fossem grandes aves, para combaterem os demónios e os feiticeiros. Eram estes filhos do deus maior silenciosos, melancólicos e fortes como touros. Treinavam lutando entre si em forma de garanhões brancos. Antes de se transmutarem em animais eram invadidos por um calor intenso e soletravam palavras desconhecidas de todos. Entravam assim em contacto com o mundo dos espíritos. Cavalgavam árvores arrancadas pela raiz, rodas de carroças, paletes de fornos, arados, molidas e jungos. Rangiam os dentes e lançavam fogo pelos olhos e pela boca. Do céu começaram a cair pedaços de cavalgaduras, assustando o mundo. Combatiam os inimigos entre as nuvens e provocavam tempestades. No final, os vencedores ateavam fogo aos adversários. Quando o galo cantava, os contendores dispersavam. As safras de uns ficavam a salvo, enquanto as dos outros ardiam como se fizessem parte do inferno. Os vencedores asseguravam sete anos de colheitas abundantes. Também descobriam tesouros ocultos, curavam as doenças difíceis, identificavam os demónios, os feiticeiros e as bruxas que andavam disfarçadas pelos povoados. Tocavam os tambores e as cornetas e punham o povo todo a dançar. Tinham sonhos poderosos e presságios infalíveis. Para alcançar o prado da vida montavam em pombas, falcões, cavalos, vacas, vassouras ou escanos feitos com a madeira de carvalho. Chegados aos prados, deixavam-se atrair pelo perfume das flores e dos frutos. As donzelas bailavam a dança da fertilidade. Diante delas, as mesas enchiam-se de alimentos raros. Era muito difícil fugir do lugar das delícias. Finalmente, as almas voltavam aos próprios corpos e assim se completava o ciclo dos heróis lendários. O céu enchia-se de flechas de fogo.