Poema Infinito (303): o vento e as sombras
Olho para o vento e guardo silêncio. Alguns pássaros abrigam-se nos rochedos. Outros lançam-se contra o desafio cinzento das nuvens. O dia parece interminável. Logo pela manhã, o sol irrompeu pelo flanco celeste que está à minha esquerda. Os seus raios arderam-me na pele e nos olhos. A seguir veio a chuva em sucessivas vagas formando muralhas líquidas entre mim e as montanhas. Fechei-me em casa. De repente, voltou o sol expandindo o seu orgulho. Desci até ao rio. Segui com os olhos a linha sinuosa do seu caminhar, por entre rochedos e corgos, por entre desfiladeiros e desvios. Observar o horizonte é uma espécie de vício. Fere-me a tua ausência. Sou possuído pela forma mais anódina de impaciência animal. Fujo à solidão ferindo-me na escrita de novos poemas. São cada vez mais estranhos. Nem eu os reconheço. O espelho já não repete todos os gestos. O foco do vento muda de sítio. A luz intensa do sol fica mais fluída. As sombras começam a decepar as árvores. Tudo à minha volta se transforma. A afirmação do tempo devora os olhares. A devoção interior da vida escorre pelos vidros húmidos da janela. Tenho esperança que este ano todas as árvores do pomar deem frutos. O inverno vai quente. O fumo da chaminé entra muitas vezes em casa puxado pelo vento norte. Na terra molhada cresce uma erva triste que servirá de alimento aos animais. Nas paredes da casa as fotografias antigas vigiam-nos o tempo de sono. Por vezes entram nos nossos sonhos. Durante a noite, os poemas atingem outra profundidade. Entendem o princípio da identidade. Sinto que cultivam o sentido do sacrilégio. Guardo ainda nas algibeiras o segredo do amor, a verdade inaudita dos substantivos, o rosto murmurado da verdade, o impenetrável sentido da vida. A linguagem é movida por um princípio atormentado carregado de metáforas. Sujeitamo-nos à perfeição desnecessária da divindade, à sua amargura excessiva. Todos os gestos são efémeros. Basta-me uma base mínima da verosimilhança para me sentir verdadeiro. Sinto os meus pés a transformarem-se em raízes. A minha memória está repleta de rostos fixos. Por vezes, os seus contornos adquirem movimento. O seu silêncio possui uma gramática própria. Os verbos transformam os campos, alteram o tempo, fixam o Cristo na sua cruz e de lá não o deixam sair. As rodas do tempo não param de nos humilhar. As suas virtudes são apenas abstratas. Recordam a loucura, a luminosa precisão das catedrais, a voz invisível da morte, o espírito oval das festividades, o cântico sacrílego da posse e do abandono, a mutilação inesperada das aparições, a evidência transitória dos corpos, o rebordo vazio dos poemas, as figuras humanas que desaparecem possuídas pelas sua sombras. Reconheço no interior das minhas mãos o calor do teu corpo, a sua gravidade exata. De madrugada, o vento deixou de soprar. Interpreto o meu autorretrato. Sou feito de monólogos. O meu tempo dilui-se dentro de uma caixa de madeira. A minha imagem afasta-se de mim a um ritmo relativamente estável. Ressurge então a minha máxima evidência, uma repetição de expressões comuns e usadas, revelações incompletas, gestos quotidianos, silêncios. Uma luz estranha perfura o ar. Os objetos libertam-se da sua hipnose quotidiana. Já nada é como era. Aproxima-se de mim um raciocínio luminoso. Viro-lhe as costas. A vida é uma repetição de gestos e palavras. Estou a transformar-me numa sombra.