Poema Infinito (310): nova organização das aparências
Todos os homens têm os mesmos pensamentos, mesmo parecendo diferentes. Todos os homens são enigmas e a solução dos próprios enigmas. Os murmúrios são idênticos. A timidez é a mesma. O assombro, esse, é sempre diferente. Submergir no amor é um desígnio complicado. Os aguaceiros de abril surpreendem-nos, permanentemente. É nessas noites que faço confidências. Aí estou eu exuberante, místico, ansioso. Perdido. Os primeiros meses do ano chegaram vazios. Os dias lamentam-se. Está escrito que o universo é um fluxo contínuo de aflições. A sua falta de sentido é indestrutível. As crianças desaparecem no fogo. As leis elementares nunca pedem relevação. A vida apoia-se nas chamas do aniquilamento. O tempo amplia-se. Os poetas traduzem os poemas para uma nova língua. Os enxertos rebentam. As mulheres cantam a expansão do seu orgulho. As sombras compridas matizam a corrente do rio. O sol desaparece por detrás das montanhas e dos seus cumes brumosos. A noite possui o mar. Os sorrisos dos amantes parecem flores de macieira. Aconchego-me na suavidade da tua ondulação. Elaboro a longa lista das memórias e dos objetos a que se prendem. Omito a casa, a bondade, a virtude e o vício. O mal impele-nos para a conversão e esta para a indiferença. As atitudes crescem dentro de nós como raízes. Alguém se equilibra na verdade e no seu oposto. Alguém mergulha na doutrina estável do passado, no desdobramento infinito das palavras esquecidas, no prodígio místico do silêncio e do vazio. Os gramáticos entretêm-se com o léxico das antigas inscrições. Desaparafusam as fechaduras das arcas à procura da modéstia, do toque divino, da inspiração e do seu índex. Descobrem então uma torrente interminável de vozes emudecidas, a conceção perfeita e infindável de heróis, heroínas, prisioneiros e escravos, vários ciclos de gestação e desenvolvimento, os fios que ligam as estrelas ao firmamento, a simplicidade, a idiotice e o desprezo. Sentem os filamentos do trigo, a timidez rápida e aflita das aves, o gotejo da seiva das árvores. Observam a exaltação, o assombro da beleza, a suavidade iluminada dos órgãos sexuais, o ócio, a vibração dos orgasmos, a metafísica dos livros e os limites do amor quotidiano. Perdemo-nos na interpretação da vida e do mundo porque acreditamos demasiado no valor das palavras. As trevas estão sempre protegidas pela geada. O dia e a noite possuem os seus próprios sons. Os jovens conversam e riem alto. As estações têm a sua própria música. Dá o vento nas glicínias, as paisagens começam a arder por dentro, os animais entram nos espaços uns dos outros. E gemem. A ironia torna-se lenta. A paciência devasta os símbolos. As nossas experiências resultaram na voracidade dos fragmentos. Recusámos deliberadamente as conceções habituais. A memória obriga-nos a organizar as aparências de outra forma. Tudo fica implícito no tempo: os desejos, as metáforas interditas, as imagens mais frágeis, a representação da eternidade, a religião dos grandes livros, os desenhos mais banais, as maldições mais frequentes. A alegria transforma-se em assombro. O teu retrato fica mais conciso. As flores dão passagem à nossa ausência. Escolhemos a parte mais fria do dia para nos amarmos. Os gestos tropeçam no desejo. Se morrermos neste instante ressuscitaremos inclinados um sobre o outro. O tempo apoia-se no seu próprio movimento.