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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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06
Out16

Poema Infinito (323): a fronteira do tempo

João Madureira

 

 

 

Procuro a divindade por todo o lado: nas águas límpidas do rio, nas fontes de mergulho da aldeia, na folhagem densa do azevinho, nas corolas vermelhas das rosas, nos pátios floridos, nos jardins abandonados, nas igrejas desertas, no cimo da árvore de natal, na distância dos montes, nas escolhas diárias, nas explicações da vida, no exagero do céu, nas horas de espera, no silêncio das árvores, nos ninhos abandonados, nos voos assustados dos pássaros, mas não a encontro. Caminhei no deserto. Reencontrei as palavras mágicas, a inocência envelhecida em alguns oásis e algumas palavras já confessadas. Escrevi até me doerem os dedos e atrevi-me a rasgar a razão. Algumas palavras iluminaram-se por dentro sem motivo aparente. Uma espécie de asfixia tomou conta de mim. Habituei-me a viver na penumbra dos dias. Aí encontro várias mitologias, princípios estelares, sonhos velocíssimos, línguas mortas a atravessarem o deserto dos livros esquecidos. Aprendi a interpretar o meu reflexo nos espelhos. Durante a madrugada surgem os sonhos obscenos que ameaçam retalhar os dias. A fronteira do tempo surgirá ao entardecer. Não consigo encontrar a memória. Entretenho-me a fotografar a sombra: a da minha mão esquerda e a das árvores do bosque. Penso que não é possível fotografar a sombra do mar, nem o vazio. Consigo no entanto sentir e escutar a perfeição do silêncio. Por vezes envolve-me a serenidade do sossego. A cidade cresce no meio das ruínas. A sua catástrofe foi lenta e demorada. Os homens de agora são como desertos. Vivem em permanente acidente. A sua catástrofe é preguiçosa. Nenhuma beleza se constrói sob o peso da destruição. O vento sopra de norte, as aves planam no ar morno do entardecer, o dia escoa-se na simetria dos dias que o precederam. Imagino anjos a abaterem-se uns aos outros com as suas espadas de fogo. Os homens têm receio de que os gládios flamejantes lhes façam arder os corações de lata. Deus devora a terra e o mar e armazena relâmpagos para provocar sismos instantâneos. Ninguém consegue escrever o livro desejado. As palavras já pensadas assustam-se e fogem. Nuvens passam e escondem-se lá para poente. A razão mata a alegria. O perfil das mulheres doces é triste. São como chávenas vazias. As paisagens eclipsam-se. As mãos pousam sobre as sombras ou sobre o teu rosto ausente. Lembro-me então do início da minha memória, das portas altas, dos marinheiros bêbados a dançar em roda do poste de iluminação pública, do gato, da velha, do rapaz deficiente, do tempo incerto dos berlindes, do pássaro morto na gaiola, dos passeios à beira-mar, da fala, do primeiro sentido das palavras, do novo sentido das palavras, da humidade dos lábios da primeira namorada, do riso dos colegas e da sua cumplicidade, da suscetibilidade dos sorrisos, das maçãs e das pavias caídas no chão da quinta, da linha sinuosa do primeiro destino, da secura fixa do olhar da minha avó, da espessura dos corpos, da distância dos corpos, da ausência dos corpos, dos ponteiros do primeiro relógio, dos gritos na escuridão, da linha cintilante que divide a noite da alba, da fragilidade da água, da serenidade das pétalas dos cravos, da sedução das abelhas pelo pólen, da lentidão da paciência, das cicatrizes nos joelhos, da metamorfose das palavras, da incandescência da escrita, dos oráculos incrustados nas pedras do caminho, das raízes das encruzilhadas, das primeiras palavras que se diluíram na água. A memória transformou-se em ferida enquanto serpenteio pelo meio da autoestrada.

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