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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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13
Out16

Poema Infinito (324): credo

João Madureira

 

 

Atrapalho-me com o fascínio que a contemplação produz nos néscios. As máquinas também se desgastam e por vezes mostram-se divididas. Os homens de hoje regem-se por estatísticas. A realidade que se amanhe como puder. Os políticos distribuem a dívida da nação pela população. Nós distribuímos os afetos pelas plantas do jardim e pelos animais de estimação. Cremos na banha da cobra, no pare, escute e olhe das passagens de nível onde já não passam os comboios, nos setores visíveis e invisíveis da cristandade, no palavreado encriptado que nos vendem os eurocratas, no alfabeto das multinacionais. Cremos também na pílula do dia seguinte, na Igreja, no Papa bonacheirão e risonho, em Jeová e no partido que nos uniformiza no espírito da manada. Cremos ainda no mercado e nas suas leis universais. Cremos nos bancos e nos banqueiros e nos políticos e nos ministros e secretários de estado e nos louva-a-deus e na escrita literária e nos cursos de escrita criativa. Acreditamos nos poemas de resposta imediata, na criatividade dos autores, na cultura dos leitores, nos senhores doutores, no poder desengordurante dos detergentes e na liderança desinteressada das nações liderantes. É mesmo muito difícil fazer poesia sem versos. Por alguma razão a chama da redenção já não nos aquece a alma. Até Deus pode chumbar num exame final da universidade. A sintaxe não é tudo. Os ascetas modernos aprenderam a sorrir. As manhãs já não submergem. A revolução transformou-se num sonho antológico dos nossos avós. Consomem-se as noções imediatas, a inflação, o peso relativo das ideologias. A música ajuda-nos a mergulhar em água gelada para tonificar os músculos. Os melhores autores escrevem efabulações sobre a delação, onde misturam anjos depenados com as cores do arco-íris, cocaína e benzedrinas e vão aos melhores festivais literários com a mesma naturalidade com que os comerciantes concluem um negócio.  Os melhores modelos desfilam com roupa feita com as páginas mais citadas dessas grandes obras desses génios que conquistam todos os booker prizes disseminados por esse mundo fora. A mim continuam-me a parecer crianças abandonadas muito cedo. Todas as grandes obras têm como tema principal a mediocridade das economias domésticas geridas por meia dúzia de personagens domesticadas. Bebe-se o vinho, bebem-se as palavras, bebem-se as causas e os respetivos efeitos. Os testemunhos são baseados nos grandes rituais e na desilusão pós-moderna da tradição. Eu não consigo sair da imagem eterna da minha aldeia onde no inverno rebentava pelo monte a água das nascentes que vinha ao vale regar as couves e os feijões. Foi dentro desse imaginário que eu fui imaginado, um pouco medroso e triste, uma espécie de neurótico campestre. Apesar do teatro ocidental, a gente pobre espalhada por esse mundo fora não cessa de lutar pela sobrevivência. Afinal, que outra solução lhe resta? O tempo devora Deus que nos devora a nós. Secam as poucas palavras semeadas nas leiras lá da pátria interior. Os caminhos são monólogos de terra. Os ventos estão moribundos. O abandono semeia a erosão. Os calendários murcham nas paredes. A terra absorve-nos. As memórias mastigam-nos. O sossego é uma espécie de arma de destruição maciça. Alguém canta uma canção de ruídos. Adormecemos. O sono é uma espécie de instrumento piedoso que nos embala. Acreditamos no arrefecimento noturno.

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