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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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20
Out16

Poema Infinito (325): o limite impercetível da sabedoria

João Madureira

 

 

Na primavera regavam-se os marmeleiros, os pessegueiros, as macieiras e as virgens que costumavam sentar-se nos bancos mais antigos do jardim. As flores das videiras despontavam e começavam a crescer debaixo das hastes umbrosas dos pâmpanos. No entanto, o amor não conseguia repousar em nenhuma estação.  Eros lançava-nos olhares lânguidos carregados de feitiços e a insónia tomava conta de nós. A insónia era uma espécie de égua atrelada à sua força. Cresceram dentro de nós os primeiros tremores. Os ventos lutavam entre si. Os homens sedentos humedeciam as suas gargantas com vinho. Nos campos floresciam os cardos e as mulheres tornavam-se mais fogosas persentindo o pecado. Os dias tinham a extensão de uma mão aberta. Os homens enchiam-se de esquecimento. A vergonha impedia-nos de falar no amor. Os mais fracos deixavam-se morrer entre as abundantes lágrimas dos seus entes queridos. Ninguém se atrevia a contrariar a verdade do sofrimento. No céu, muitas estrelas se eclipsaram. A luz do tempo expandia o orvalho. A saudade era então uma nova forma de desgosto. Nos altares do templo ardia o incenso. As brisas sopravam suavemente. Tranquilizavas-me dizendo que mais tarde alguém se lembraria de mim. Sorria. Eu procurava o desejo com ardor. Tudo aquilo me doía. Ainda hoje me dói. É terrível um homem ter duas vontades ao mesmo tempo e não conseguir consolar nenhuma. Na Grécia Antiga, os Cretenses dançavam harmoniosamente com os seus delicados pés em volta de um altar dedicado a Lesbos, pisando a frágil flor da erva. Nas margens dos rios cresciam os juncos e a noite sonolenta fechava os olhos de tédio e espanto. Aos anjos arrefecia-lhes o coração e deixavam cair as asas. Nós vivíamos o tempo de forma doce. Subíamos aos montes procurando neles o efeito dos abismos. Soprávamos nas asas dos pássaros. Passávamos mesmo à beirinha dos seus voos e sorríamos. Os cucos fugiam de nós. Lá teriam as suas razões. As cinzas dos nossos antepassados andavam por ali espalhadas. As trevas cobrem agora os seus olhos. A sua lembrança está escondida nos carvalhos mais altos. Caminham dentro do esquecimento. As gralhas mais atrevidas atravessam as nuvens. Aconteceram então grandes prodígios. Os homens começaram a habitar as águas, longe das terras, no meio dos oceanos. Os mais infelizes fixavam os olhos nas estrelas e deixavam-se possuir pela alma do mar. E recomeçou então a velha história dos patifes governarem e dos maus dominarem os bons. Impôs-se a mais velha lei da vingança. Adularam-se os inimigos e quando sentiam que os tinham sob o seu domínio, castigavam-nos sem inventarem qualquer pretexto. No rosto dos trabalhadores começou a correr um suor infinito. As portas dos templos fecharam-se aos profanos. Os filhos dos homens santos ficaram luminosos como a lua. O verbo passou a ser divino. Deus começou a oferecer aos mortais o mal que, dizia, vinha do bem. As guerras ficaram ainda mais sangrentas. Tudo se começou a mover: a água, o fogo, a terra, o ar, a noite e o dia. Os céus resplandeciam, os astros brilhavam, as mães cantavam aos deuses em louvor dos seus filhos. No firmamento, a terra começou a alternar com o céu. As mães passaram a ser o próprio sonho dos filhos. É muito difícil entender o limite impercetível da sabedoria.

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