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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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27
Out16

Poema Infinito (326): procura

João Madureira

 

 

 

Amanheci confundindo-me com as nuvens. Ontem a noite caiu cedo atravessando fria os postes elétricos. Em casa não estava ninguém. Acendi a fogueira e pus-me à janela. Sentia ainda em mim a agitação do teu corpo. Dentro da minha cabeça as aves fazem barulho. Tento pensar-te na luz crua da razão, mas não consigo. As minhas palavras dirigem-se à tua própria sombra. És o ponto central de toda a minha metafísica. No aquário os peixes mexem-se como criaturas lentas. Por vezes confundo-os com répteis. Caiem-me folhas do corpo. O outono é uma lenta desagregação da vida e da memória. Da janela vejo o cume das árvores que me estimulam o instinto poético primário. A arte poética resulta sempre de uma hipótese de afetividade, da consciência dos símbolos, da transcendência das palavras, da irreversível força do desaparecimento, da cintilante evidência das teorias abandonadas. As palavras ficam mais obstinadas, transformam-se em lugares-comuns. Os caminhos sucedem-se uns aos outros. A memória vacila. Contemplo a profunda devastação do adeus. Escrevo para libertar o silêncio que guardo dentro de mim. Sou um andarilho solitário. Oiço os murmúrios como se fossem gritos. Os gestos do tempo ficam cada vez mais vagos. A totalidade fragmenta-se em infinitos nadas. A luz desfaz-se dentro dos teus olhos. Os rostos antigos tornam-se mais familiares. As lágrimas que choramos são como escassos adjetivos. As palavras vão-se multiplicando nas partes vazias das salas e dos quartos. Alguém fixa a nossa sombra na parede. Do Norte sopram as memórias adormecidas, as lamentações, o mutismo dos gestos, as divindades ilusórias, o rumor mortal das folhas das figueiras. Na vida triunfam os bebedores de redundância, os adversários das metáforas, os ressoadores intransigentes do supérfluo, os amantes da ignorância, da docilidade e do laconismo. O tempo transformou-se numa espécie de espelho absoluto que repete tudo o que é subjetivo. As figuras mais densas fogem para o infinito, lá onde se encontra a infância, onde a memória é luz, onde a tristeza e a alegria são pó, onde as chamas primitivas consomem tudo aquilo que existiu e o transformam em éter. Dá-me vertigens pensar na infância, na sua simplicidade primitiva, na sua musicalidade perdida, nas suas regras frias e sem sentido, nos seus impulsos de desordem. Agora doem-me os anagramas das curvas do teu corpo, a reaparição das ausências, as solicitações, as fugas, a solitária loucura das civilizações, as vozes silenciosas, o tempo submerso nas cidades, a intensidade efémera da luz, as extensas simetrias da beleza, a impressão da água nos solos, a rigorosa imobilidade das cores, a psicologia da imaginação, o fundo cinzento das palavras. As distâncias fictícias expandem-se dentro das distâncias reais. Continuo obstinado pelo sentido feroz da compreensão. A segunda revelação é sempre falsa. Continuam a cair-me folhas do corpo. O chão fica juncado delas. Nas folhas descubro a insólita escrita dos místicos, o seu exercício crepuscular, a angústia da dúvida divina, a inquietação da fé, o amor trágico dos dogmas, a incompreensível arte do elogio, os movimentos obsessivos da embriaguez, as simbólicas metáforas vegetais, a dúvida obsessiva dos poetas. O sol caminha no horizonte. Oiço o vento a soprar da direção do mar. Olho os montes. Nos caminhos cantam os viajantes. Desço os degraus do meu olhar e vou procurar-te.

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