Poema Infinito (327): a voz contínua da ambiguidade
Atravesso a rua, subo as escadas, abro a porta e reparo que tudo está mudado, principalmente a arte dos momentos e os murmúrios. O batimento das almas é diferente. Toda a aprendizagem se transformou numa ruína. Os campos ficaram áridos, a luz esgotou a paisagem, a voz da água espalhou-se pelo fundo dos poços. Abro a janela e reparo que os espaços estão vazios. O nada expande-se na sua inexorável frequência exata. As imagens que guardo estão no seu tempo verbal correto. A nudez dos corpos é núbil. A volúpia encobre as roseiras. A imagem do meu avô continua na sua posição sentada junto à casa de pedra e madeira. No amor tudo é dor e movimento, tudo é leveza e exatidão. Tudo é caos e ordem. No céu ainda brilham os astros que já morreram. As ervas bravas alimentam-se de água estagnada. As nuvens branqueiam o céu. Os meses continuam fixos. O vento muda o aspeto da paisagem. As leis fecundas da efemeridade emergem dentro das rosas enquanto as suas pétalas dormem enroscadas umas nas outras. Toda a confiança se baseia numa espécie de cegueira consentida. O ar mais fresco delimita o silêncio. Tento de novo enfeixar as palavras, vincular as perguntas às respetivas respostas, guardar os sons mais puros dentro das selhas mais velhas, salvar a árvore da inocência, sobretudo os seus ramos mais jovens. É tudo tão ambíguo. Os lugares movem-se devagar, a dor engole o destino e o desejo. As perguntas iluminam-se. Então o desejo faz incisões na superfície dos nossos corpos. A vida ora se contrai, ora se expande, para voltar a contrair-se. A voz contínua do espírito alimenta a paisagem de sons discretos. O velho pátio sugere uma constelação e lembra o antigo formato do verão. A roupa parece feita de ar. Sentimos a radiação das vozes, a transparência exata da paixão, os diversos modos e registos da alegria e da tristeza, a seriação dos sentimentos, a gradação dos sorrisos, a cadência invisível da inquietação, a escala intensa das aproximações. Apesar da luz intensa, não desviamos os olhos. Chegam os primeiros pássaros, vão-se as últimas estrelas. Por vezes a vida coincide com aquilo que vulgarmente chamamos de felicidade. Vivemos milénios de exposição aos signos e ainda não conseguimos entender a ordem explícita das metáforas, as mensagens minimalistas das escrituras, a morte súbita das estrelas, o abismo colorido formado pelo arco-íris, a face lúcida da mudez, as emoções que substituem a poesia, a arte escura da recordação, a ondulação das estações, a oscilação caligráfica do branco e do negro, o sentido da vida, a luz que provoca as sombras, as palavras que apagam os sentimentos, os sentimentos que apagam as palavras, a arte da diferença, a expansão do mundo, o incómodo sossego da solidão, o tempo que nos oferece o presente da desilusão. A verdade e a mentira costumam dançar sempre juntas. Dentro da nossa memória, os ceifeiros cantam, o tempo agita-se, a terra respira, os ignorantes obstinam-se com a sua sorte. Vivemos o tempo das grandes ausências. O espanto muda o desejo. Continuamos a persistir no ofício árduo de trabalhar as palavras. Por vezes elas ficam frias e pousam em nós como se fossemos nomes. Outras vezes ganham a imensa fluência das plantas e fabricam a primavera. Quase sempre as palavras tornam o tempo rotativo. Com elas aprendemos a amar os fragmentos mais instáveis da vida, a quase imperfeição dos momentos que passam. Com elas pretendemos entender a incansável desordem da matéria e do cosmos. Abençoado seja o deus eterno das pequenas coisas.